segunda-feira, 28 de maio de 2012

Peixes, Pássaros, Pessoas, de Mariana Aydar




A obra-prima de Mariana Aydar
Mariana Aydar é dessas raras cantoras que, ao abrigar uma canção em sua voz, consegue significá-la definitivamente, canonizando-a, estilista do canto que se revelou desde seu primeiro CD, lançado há mais de três anos. Hoje o Mais Cultura! traz o já consagrado Peixes Pássaros Pessoas (2009 / Universal Music / 29,99), corajosamente composto por 13 canções inéditas, encadeadas num roteiro conceitualmente elaborado – fato que confere aos temas escolhidos, uma significação específica e diferencial no conjunto do repertório. Aliás, o repertório, sua qualidade e as formas com que Mariana o molda implicam a essencial destoância do disco em relação às demais produções contemporâneas, costumeiramente centradas no excessivo cuidado com arranjos e com a voz do cantor.

Aqui, nesse maravilhoso Peixes Pássaros Pessoas, o resultado advém de uma proposta aparentemente descentrada dos padrões, voltando sim atenção a refinados arranjos e ao modo ímpar de interpretação da cantora, mas estabelecendo e obtendo, de todo o processo criativo, uma força vetorial conduzida pela segurança da intérprete que coloca destreza e inteligência a serviço de uma escuta global, inteiriça e estoica, conseguindo oferecer ao público um dos mais diferenciados CDs produzidos nos últimos anos.

Ao iniciar o disco com o belo samba Florindo, de Duani (compositor de mais seis imprescindíveis temas do roteiro, e produtor do CD junto com Kassin), camadas de pensamentos condizentes ao fio-condutor temático do roteiro são levemente prenunciadas, como num samba de Candeia, daqueles em que a esperança é modestamente perseguida pela remissão consciente do mundo material: Quem quer viver bem no presente encontra o seu lugar (…) E todo esse sofrimento não pertence à sua casa, sentencia Duani, autor capaz de chegar a extremos de densidade poética em demais versos e sambas.

Transbordando em signos, metáforas e imagens oníricas sobre o branco da página e sob nuvens rasas, Mariana e Duani desenham claramente o viés-motriz do projeto, conseguindo estabelecer um diálogo espontâneo entre as canções – trabalho árduo nos dias de hoje. E essas, individual e coletivamente, perfazem uma espécie de oráculo, decurso pelo qual a canção passa a servir de espaço para a expressão de uma fala recusada, elidida, bastante visível, por exemplo, no neo-baião Tá? (da trinca Carlos Rennó, Pedro Luis e Roberta Sá), no qual cada frase é mutilada antes do término da sílaba ta, pois por onde você passa o ar você empes..., e pra bom entendedor, meia palavra bas.... Aliás, esse fora o mote inicial da criação que acrescenta ao disco pitadas de uma cosmovisão acidamente crítica, que também se intercala, sutilmente, no bojo de outras canções.

Paralelamente, como exemplo, a recepção afetiva e amorosa do samba Aqui em Casa (de Duani e Kavita), leva o ouvinte a imageticamente criar o idílio que, com o seguimento dos versos, culmina na realidade de que todo esse amor (…) nunca passou de amizade, últimas estrofes que conferem a abrupta cisão na expectativa imaginária. Do macro ao micro, isto é, da consciência de um todo existencial ao pequeno mundo dos afetos, o roteiro transcende ainda ao buscar o lócus paradisíaco, tônica presente em obras de alguns poetas-letristas. Trata-se do sincopado Pras Bandas de Lá, de Duani, no qual o eu-lírico-enfastiado pretende deixar o mundo velho por aqui, pois é cada uma que eu tenho que escutar -, abandono e troca de um mundo saturado para a opção das bandas de lá, lugar-incomum idealizado onde se pode ver o sol morrendo no mar. Com um sensível radar, a completude alcançada pelo encadeamento de canções consegue enfatizar a contradição como uma essência comum e natural de nossa condição humana contemporânea.

Com Nuno Ramos, Duani cria o dilacerante samba Manhã Azul, no qual uma outra Mariana brinca com sua intenção interpretativa, narrando manhãs possíveis a uma vida aberta para folhas secas e vento, eclodindo em quem foi que botou a chuva dentro dos meus olhos? Qual foi a luz da luz do sol que cegou e me fez ver?. E esse olhar-gume afiado, veladamente apocalíptico, enxerga a cidade cair em pé, iluminando-se pela luz de uma alegria azul, prenúncio que se afigura mais concretamente em Poderoso Rei (Duani), no qual um dia as pessoas da terra vão perceber que não valeu de nada o que se defendeu, samba entoado em garra e dentes por uma Mariana que, inevitavelmente, faz emergir a lembrança da grande intérprete Clara Nunes, cuja temática dos dois sambas também integravam um segmento de sua obra (como As Forças da Natureza, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, Juízo Final, de Nelson Cavaquinho, entre outras peças).

Não há comparações entre Mariana Aydar e Clara Nunes, separadas por uma lacuna abissal de tempo e de evoluções estéticas; mas se Clara estivesse viva, provavelmente abraçaria Mariana, e encontraria na jovem uma ponte de continuidade, devido à importante característica que as une: ambas abraçaram o samba como um segmento concernente e bem definido em suas produções, sem se rotularem sambistas (embora Clara ainda sofra esse efeito), o que as limitaria diante do vasto potencial de intérpretes e estilistas do canto que possuem.

Não à toa Clara Nunes, num mesmo disco, cantava sambas de Nei Lopes, Candeia, João Nogueira, Paulinho da Viola, que dividiam espaço com um bolero composto por Paulo César Pinheiro, assim como um fado de Chico Buarque – refiro-me ao LP As Forças da Natureza, de 1977. Lançando mão de outros modos de abordagem e criação, Mariana Aydar concentra-se na ressignificação de suas referências, bem como no processo de seu trabalho que, sem cair em equívocos, reforça sua atuação como intérprete da canção, embora o samba a persiga (como diz no dueto com Zeca Pagodinho, O Samba me Persegue, de Duani), mas mantendo-se fiel ao seu talento e ofício: a de intérprete, capaz de vestir estilos diversos, de acordo com aquilo com o que quer dizer.

E no esteio do querer dizer o essencial em poucas palavras, utilizando-se de um vasto campo semântico ao qual os compositores parecem obter livre acesso, Mariana nos apresenta a marcha Peixes (de Nenung) que, empunhada por guitarras, cellos, teclados, baixo e uma lancinante bateria e árvore de sinos, parece deflagrar e consolidar o eixo da ideia central do projeto, tornando-se uma chave de compreensão para a rica hibridez do disco -  o título Peixes Pássaros Pessoas é extraído de um dos versos da música. Ao abusar de metáforas na medida certa, Peixes alinhava as demais canções, permitindo-as confluir, respirar e coexistir natural e espontaneamente nesse inesgotável matulão de signos que o disco traz.



Por meio da canção de Nenung (atuante compositor da banda Os The Darma Lóvers, que ainda vai dar o que falar!), conseguimos inclusive viajar nos detalhes do projeto do encarte do disco, que apresenta fotos de Mariana Aydar coberta por restos de drapejados dourados, sobras de carnaval, brocados misturados à terra (mãe-terra?) sobre a qual Mariana aparece deitada, expondo bracelete dourado e pulso, ora rindo, ora sisuda, ora com rosto encoberto pelo braço, ora guerreira, ora menina, sob fios embolados e sustentados por postes.

É quando Mariana – Kavita, matizada em sânscrita poeta, deixa de ser um pseudônimo para se tornar seu próprio heterônimo mítico, pitonisa que se subverte ao enxergar e referenciar a corrosiva e real igualdade, translúcida sob seus olhos, entre objetos seres coisas homens vida e morte, peixes pássaros pessoas aprisionados à crueza da cegueira condicionada pela inversão de valores e de condutas, enfermidade generalizada pela qual passa a humanidade.

Num grito sufocante, Mariana encerra Peixes como que enfrentando os anzóis atravessados na garganta, na negação de se morrer como decoração de casas, tocando, outra vez, e conscientemente, na nevralgia da contradição. Eu não escrevo pra ninguém e nem pra fazer música, ratifica em sua bela Palavras Não falam, mas contraditoriamente diz se entender escrevendo e vendo tudo sem vaidade ao preencher o branco desta página linda. Situada (e sitiada) em um radical e interminável jogo de contrários, entre o desmanche do que fora o carnaval, caminhando sobre o luto posterior à festa, entre belezas acesas das práticas do amor e horrores de tanta social e amores falsos, a artista esfacela sua persona em espelhos, matizes e signos, acintosamente para dar conta do conteúdo de seu dizer, súmula da existência de um trabalho que consegue escapar de rótulos – índie, new-hippie etc. -, para conseguir chegar, do modo que for à tessitura da alma do ouvinte.

Daí a necessidade de um trabalho que é, indubitavelmente, resultado das reflexões, das experiências e da alma criativa dos artistas envolvidos, e de Mariana, que na contracapa do disco expõe o rosto à contraluz, tentando enxergar algo – a imanente e incessante busca pela aprendizagem. Ousadamente encerra o disco com Tudo o que Trago no Bolso (dela em parceria com Nuno Ramos), num quase sussurro exausto, sobre os acordes da guitarra de Lanny Gordin: Como assim? Onde estou? Já passei da foto no jornal da minha cara….

Por onde Mariana passa, deixa um rastro de poesia e luz, hai-kais entre flores de aço e vasos de barro, versos transversais atravessados em nossos olhos, peixes, pássaros e pessoas reluzentes num mesmo plano, sinalizando-nos a direção de um caminho – e a música é sua forma de expressão.



Nota 10

Peixes Pássaros Pessoas / Mariana Aydar



Marcelo Teixeira

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