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sábado, 4 de março de 2017

A obra-prima de Eduardo Gudin


Obra-prima de Gudin
Se fosse apenas pela interpretação de Eduardo Gudin, Um Jeito de Fazer Samba (2007 / Dabliú Discos / 26,99) já seria um disco e tanto independentemente de sua categoria. Mas as participações de Paulinho da Viola, Vânia Bastos e Quinteto em Branco e Preto fazem tanta diferença, que fica impossível não dizer que esse disco de Gudin não seja perfeito dentro de sua esfera.  Centrado em seu jeito particular de fazer samba, um jeito característico do compositor, esta obra-prima projeta a evidência de seu lado cancionista, como letrista em composições inéditas de sua lavra, bem como em músicas também surgidas no decorrer da vida, mas nunca antes gravadas, em parcerias com Paulinho da Viola, Francis Hime, Paulo César Pinheiro, Luiz Tatit, J. C. Costa Netto, Nelson Cavaquinho e Roberto Riberti. Este belo e rico trabalho celebra a expressão de um artista em sua plena convicção autoral e dominadora, fortemente ligada ao samba e à cultura assimétrica do Brasil, sublinhando a sutil formação do conjunto de informações musicais que assolaram nosso país quando o disco fora lançado. De 2007 até hoje são 10 anos de diferença e lá naquela época a proposta musical como um todo era diferente da de hoje, que requer uma malandragem sambística atemporal que nunca se viu.  O repertório de Um Jeito de fazer Samba tem dois momentos sublimes: a participação de Francis na composição da exuberante Moto Perpétuo e Luiz Tatit em Sensação. Destaque maior para O Amor e Eu, um dos sambas mais lindos que Eduardo Gudin compusera em um momento de distraída atenção poética e que resultou no samba de maior destaque de todos os tempos e que está aqui, bem neste disco atemporal, com um frescor único e sensibilizado à flor da pele.

 

Um jeito de se fazer samba (2007) / Eduardo Gudín
Nota 10
Marcelo Teixeira

domingo, 14 de setembro de 2014

As releituras de Mônica Salmaso em Corpo de Baile (2014)


Ótimas releituras
O penúltimo disco de Mônica Salmaso, Alma Lírica Brasileira, lançado em 2011, foi passado desapercebido pelo grande público e pela crítica especializada e acabou sendo um disco qualquer na sublime carreira da cantora, mesmo sendo esse disco um paralelo de divisor de águas na carreira de Mônica, por se tratar de um disco produzido com requintes de rica musicalidade e que no frescor de sua alma de cantora, expôs todo o seu sentimento para com as canções ali cantadas. Teve Adoniran Barbosa, José Miguel Wisnik, Paulo Vanzolini e o sambinha de Herivelto Martins, Meu rádio e meu mulato, mas o disco não emplacou. Agora a cantora acaba de lançar um dos discos mais nobres de sua carreira. Corpo de Baile (2014 / Biscoito Fino / 31,99) é um punhado de canções da dupla Guinga e Paulo César Pinheiro e mesmo sendo um disco de releituras, as músicas dão um novo frescor na delicada e sútil voz de Mônica. Destaques para a lindíssima Porto Araújo, já cantada brilhantemente pela cantora Simone Guimarães em seu disco Virada pra Lua (2001) e Bolero de Satã, imortalizada na voz de Elis Regina, que no disco Elis, Essa Mulher (1979) cantou ao lado de Cauby Peixoto. Recentemente, a cantora e filha de Elis, Maria Rita, deu um banho de interpretação nesta mesma música, pouco gravada do cancioneiro de uma das maiores vozes do Brasil. Quase todos os discos de Mônica são um convite para que possamos crer que a música popular brasileira está a salvo e Corpo de Baile prova mais que isso: que a música de dois gênios da música está para ser ouvida por todos e em todos os cantos. Mônica Salmaso apenas deu um verniz e explicou a importância de Guinga e Paulo César Pinheiro dentro da MPB. Corpo de Baile é um disco que merece ser ouvido. E respeitado!


Corpo de Baile / Mônica Salmaso
Nota 10
Marcelo Teixeira

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Os oásis de Maria Bethânia


 

Os oásis de Bethânia reunidos
O 50º álbum de Maria Bethânia, Oásis de Bethânia (2012 / Biscoito Fina / 35,00) vem com força total e com um tom de desabafo e fúria por parte da interprete de Cárcara, tamanha a voracidade com que as palavras são jogadas da boca da cantora. A prova maior disso é a regravação de Calúnia, do repertório de Dalva de Oliveira: a letra nervosa já avisa quisestes ofuscar minha fama, até jogar-me na lama só poruq eu vivo a brilhar; sim, mostras-te ser invejo, viraste até mentiroso, só para caluniar. Outro momento de desabafo é Carta de Amor, que, apesar do nome, é na verdade, um aviso dizendo Não mexe comigo, que eu não ando só. Em seguida, santos, entidades e até Jesus, entre muitos outros, são invocados em sua proteção, culminando no fim em um discurso em que afirma que esta pessoa que está tentando derrubá-la não passa de um nada. Maria Bethânia surge ainda mais forte neste disco, depois de lançar inúmeros discos igualmente fortes, com sua voz potente e cortante, mas neste mesmo disco há espaço para interpretações de cunho mais denso e emocional, que é especialidade de Bethânia, como a sensacional Casablanca, de Roque Ferreira e Vive, composta por Djavan. Com este novo trabalho, florido e forte Bethânia reafirma-se como intérprete maior deste Brasil. A sua presença e trabalho ainda é de grande relevância para a nossa música popular, queriam ou não. Oásis de Bethânia se aproxima da literatura, sem afastá-la da música e esse lirismo faz toda a diferença aqui.  O tal oásis de Maria Bethânia fica no sertão, com seu silêncio, seu céu limpo, gente digna e a proximidade de Deus. Com mais de 47 anos de carreira, a cantora lança um disco intimista, como uma capa e cores diversificadas em suas dez faixas e com um sabor de quero mais. O CD traz os seus preferidos Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro, além de Jota Velloso (seu subrinho), Djavan (34 anos depois do estouro de Álibi) e dois clássicos: Calúnia, já citado acima e Lágrima, de Orlando Silva. O disco é um dos melhores lançamentos da cantora, que já não precisa mostrar a ninguém sobre sua carreira, trabalho ou algo. Basta fechar os olhos e ouvir os oásis de Bethânia.

 

Oásis de Bethânia / Maria Bethânia
Nota 10
Marcelo Teixeira

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Tudo (2013) o novo CD de Joyce!


Joyce: maravilhosa sempre
Todo disco da cantora Joyce desde o seu lançamento como interprete é bem vindo, assim como suas canções compostas solo ou em parceria com os grandes músicos brasileiros ou internacionais. Mesmo com a onda de cantoras pop ou algumas que surgem do nada dentro da MPB e desaparecem logo na primeira esquina, Joyce é o oposto disso tudo e continua firme fazendo discos cada vez mais autênticos, maravilhosos e audaciosos. Sucesso de primeira grandeza no Japão e esquecida por muitos aqui no Brasil, Joyce ressurge como quem nada quer no disco Tudo (2013 / Far Out / Biscoito Fino / 49,00). Um retorno muito bem vindo ao jazz brasileiro, a cantora se refere a sua música como sendo MCB (Música Criativa do Brasil) e consegue atrair ouvidos sensíveis por onde passa pelo conjunto da obra. Muitas vezes, Joyce encanta apenas pelo solo que faz entre sua voz, seu banquinho e seu violão. Sua voz é um conjunto variado íntimo que fornece um lembrete do alcance vocal e de sua habilidade instrumental, igualmente suave e sublime, nos trazendo um pouco do frescor, da habilidade, do carisma e da musicalidade vibrante que sua música nos transpassa. Há beleza em Tudo, jma beleza real que Joyce traz com franqueza e paixão para os que já se tornaram clássicos no disco.

Joyce Moreno lança Tudo, o primeiro CD de canções inéditas em dez anos . Como o nome já diz, Tudo remete à diversidade de gêneros musicais presentes no belo repertório, que tem desde samba até galope nordestino, jazz, choro, bossa nova. O álbum chega ao Brasil depois de ter sido escolhido pelo público da cantora (que exigiram a vinda do CD do Japão). O novo disco trás canções inéditas e que com certeza encantaram os que ainda não conhecem a obra e a musicalidade de Joyce. Das treze faixas, oito têm letra e música da cantora, mas o disco também tem canções com parceiros de longa data, como o poeta Paulo César Pinheiro (Quero Ouvir João e Dor de Amor e Água), Zé Renato (Pra Você Gostar de Mim) e duas novas parcerias, com Nelson Motta (Estado de Graça) e Teresa Cristina (Sem Poder Dançar).

Tudo dialoga com o uso de vozes, seja com um naipe de instrumentos, como em Claude ET Maurice e no galope Boiou, ambas com arranjos de Maurício Maestro ou até na emblemática Puro Ouro, com a participação do coro do coletivo Segunda Lapa, que tem como músicos os sensacionais João Cavalcanti, Pedrinho Miranda, Moyseis Marques e Alfredo Del Penho.  O samba marca presença também em Quero Ouvir João, que traça uma espécie de mapa dos sons atuais do Rio de Janeiro (que Joyce tanto ama), que mistura tanto o pancadão do funk quanto a levada do reggae. Em Dor de Amor É Água, um samba-blues, a participação de Zé Renato, com quem Joyce também divide a parceria em Pra Você Gostar de Mim, só faz reafirmar a existência de ambos dentro da MPB.

Vale à pena ouvir Tudo pela simplicidade com que o disco nos conduz a variantes de nossas vidas e pelo conjunto de ser uma obra puramente brasileira, de uma cantora brasileira, com um sotaque brasileiro, bem ao estilo de que tudo merece sua atenção. E Joyce Moreno merece.

 



Tudo / Joyce Moreno

Nota 10

Marcelo Teixeira

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

As histórias de Paulo Cesar Pinheiro em livro


Histórias sem fim
Hoje o Mais Cultura Brasileira será diferente, experimental, divertido e universal. Diferente porque não falarei de música por completo, mas sim de leitura embalado por músicas. Livros tão bem escritos remetem à músicas muito bem compostas. E Paulo César Pinheiro tem uma vasta carreira musical que não compromete a ninguém e muito menos inveja à ninguém. Paulo César Pinheiro é música para os olhos. Não, não irei falar de nenhum show de Paulo César Pinheiro, nem de nenhum lançamento em disco. Vou contar um pouco da experiência que tive ao terminar de ler neste fim de semana o livro Histórias das minhas canções - Paulo Cesar Pinheiro. Cantado por mestres e divas da MPB, Paulo César Pinheiro foi marido de Clara Nunes, uma das maiores cantoras do Brasil, teve uma amizade verdadeira com Elis Regina, o mito brasileiro, foi cantado por Maria Bethânia, Joyce Moreno, Nana Caymmi e segue embalando novos cantores com suas preciosidades. Não é fácil ser Paulo César Pinheiro quando Paulo César Pinheiro é Paulo César Pinheiro: cantor, compositor, homem, carioca, letrista, poeta, solitário.

O formato de Histórias das minhas canções começou com Chico Buarque, numa espécie de biografia de suas canções, e revelando curiosidades e a verdadeira história das composições do artista. No entanto, este primeiro livro foi escrito com Wagner Homem, amigo próximo de Chico.  Já o de Paulo César Pinheiro tem um toque adicional de veracidade e intimidade, que é ser contado pelo próprio compositor e poeta. Poeta este que já tem mais de mil músicas e outras dezenas de parcerias, além de livros e álbuns. Poeta que hoje é reconhecido como um dos maiores compositores de samba e da música brasileira de todos os tempos.

Fã confesso de Guimarães Rosa, Paulo César Pinheiro era querido por Elis Regina por sua poesia na linguagem simples e quase popular, mas com uma profundidade estrondosa. Foi parceiro de Baden Powell, Mauro Duarte, João Nogueira, Lenine, Tom Jobim, Wilson das Neves, e hoje é parceiro dos filhos e outros jovens talentos, atravessando gerações.

O livro nos revela, através do coração do escritor, sua intimidade e sua forma de pensar as coisas com uma leveza e nos misticismos de suas crenças. Revela momentos seus, como a morte de sua mulher Clara Nunes, e porque resolveu compor uma música póstuma em sua homenagem.  Este que foi admirado por Carlos Drummond de Andrade, dividiu o parceiro Baden Powel com Vinícius de Moraes, tinha um poema seu num quadro na casa de Dorival Caymmi e outras divertidas hstórias, nos revela a cada folha algo novo, e nos mostra a magnitude de sua obra.

Paulo Cesar Pinhero é a voz das tradições do samba, do samba generoso que divide, agrega e que arrebata os corações de quem sabe sambar. Bom samba a todos!

Leitura indispensável!
 

Livro: História das minhas canções

Autor: Paulo Cesar Pinheiro

Edirora: Leya

Preço: em média 45,00

sexta-feira, 14 de junho de 2013

O canto forte de Clara Nunes em O Canto das Três Raças


Clara: músicas fortes no disco de 1976

Clara Nunes se foi em 1983 e já se foram 30 anos de sua morte, mas seus discos ainda ecoam e transforma o mundo da música em algo surpreendente e inovador. O Canto das Três Raças (1976 / EMI / 29,99) é um disco que pulsou nos poros das pessoas, da elite, da sociedade, dos políticos, do mundo e mostrou o quanto a África está em nossas veias, assim como a figura de Clara demonstra o Brasil em suas variantes e formas. O disco agitou as carcaças dos mais brasileiros dos ritmos, cravando para sempre o nome de Clara Nunes na história de nossa música. Cantando forte, bonito e audacioso, o disco lançado em 1976 trouxe inovação e determinação de uma das cantoras que bradavam a brasilidade na época. Clara Nunes foi eleita a melhor cantora de seu tempo por vários anos e até hoje seu nome inspira e aspira novas cantoras a seguirem seu estilo, adotarem seus cabelos e seus adornos e a cantarem em uníssono praticamente todas as faixas deste disco.

Lançado até mesmo no Japão, que se renderam – e ainda se rendem – aos nossos grandes artistas, O Canto das Três Raças merece todos os destaques possíveis pela magia, pelo encantamento, pelo ritmo, pela voz, pela cantora, pelos compositores e pelo conjunto da obra. Clara era estrela e fez deste disco uma das melhores maravilhas de seu tempo. Ontem e hoje se confraternizam e já se completam 37 anos do lançamento desta obra-prima intelectual e perfeita do cancioneiro de Clara. A cantora, que não gostava de rótulos e nem de ser chamada de sambista, gostava de ser popular, mas mal sabia ela que o seu popular agradava a multidões que a seguiam e a idolatravam. O blog Clara Nunes Deusa dos Orixás (www.claranunesdeusadosorixas.blogspot.com) é uma prova disso: desde o seu lançamento, vem mostrando o quanto a cantora ainda é lembrada e a força descomunal de sua presidente, Aninha Vieira, é favorável para o crescimento dos novos fãs.

O Canto das Três Raças deveria ser um hino à todos e cantado em praça pública antes mesmo de iniciar a partida de futebol ou quando morresse algum político. Para a Copa do Mundo, que iniciará suas partidas já no ano que vem, a música que trata de um mundo pobre, triste, arcaico e laico, seria uma boa pedida para que nosso canto ecoasse cada vez mais alto, bradando assim uma legião de brasileiros ao confinamento mútuo de várias gerações.

De Vinicius de Moraes surge Ai Quem me Dera, um hino deprimido, melacólico e sutil sobre a esperança do amanhã, do belo e do novo acontecimento e é marcado por belas palavras que nos remete a lembranças tristes de quem partiu ou de quem podemos esperar ouvir chamar nosso nome um dia. A esperança era a melhor palavra de Clara, que já deu nome a um de seus discos e era repetida várias vezes por ela. Aqui em O Canto das Três Raças, praticamente todas as músicas retratam a fé e a esperança de que algo novo possa acontecer ou renascer.

Basta Um Dia, de Chico Buarque, ficou tão marcante e presente em sua voz, que até mesmo o compositor carioca ficou maravilhado com tamanha dramaticidade. A música tem um certo lirismo que conseguimos captar através da voz de Clara e que penetra em nossa alma com afinco e sutileza tenra. Meu Sofrer, de Marçal e Bide, traz toda a efervescência de uma luta contra o amor, o pecado e a lastima. Risos e Lágrimas, de Nelson do Cavaquinho, José Ribeiro e Rubem Brandão se entrelaça com Tenha Paciência, também de Cavaquinho com Guilherme de Brito e fazem uma justa causa para com a fé e o afeto.

O forró e a alegria pedem passagem em Alvoroço no Sertão e Fuzuê, fazendo da voz de Clara um grito contra a impunidade nordestina. Lama foi um sucesso seguido de perto pela faixa título e até hoje seu verso repercute em debates. Creio eu que, para noventa por cento da população brasileira, a canção título é o máximo de informação que se tem sobre O Canto das Três Raças, sendo música de batuque pra negro escravo fazer festa, mesmo sendo um eco triste.

O Canto das Três Raças começa com uma introdução em toque simples de atabaque, característico de terreiro de umbanda, não de candomblé, secundado pela entrada de um violão anunciando a harmonia musical, para a entrada da voz da Clara que canta, acompanhada somente por esses dois instrumentos, a primeira estrofe. Já na segunda, quando outra raça entra em cena, o negro, um Agogô entra junto e se une aos dois instrumentos, permanecendo assim até a quarta, a do refrão, cantado só pela Clara, quando surge o som de um surdão com batida sem resposta (tummmm……..tummm), exatamente como era o samba em suas raízes. Depois de um tempo é que veio a batida com resposta (tum-tu….tum-tu) imitando o coração, acelerando o andamento musical e se mantendo até hoje nas escolas de samba.

Esse trio de instrumentos se mantém com a Clara até o final da primeira execução da composição, que finda no segundo refrão, agora cantado por um coro de vozes masculinas, imitando os escravos. Na entrada da segunda execução, aquele atabaque único se transforma em tres (Run, Rumpí e Lé), comuns ao candomblé, o surdão ganha batida com resposta, o Agogô começa a improvisar e, junto com eles, entra todo o instrumental de uma escola de samba cantando um enredo na avenida. 

Acho que quando ouvimos a música, não só essa, mas todas de um mesmo nível, sentimos toda essa preocupação do compositor no ato da composição através da emoção que ela nos transmite; esse destrinçar da canção exige, além de informação cultural, um entuito de se observar, pois quando ouvimos a canção pela primeira vez, sentimos uma coisa, qualquer coisa, um arrepio ou um suor frio, por não saber definir o que foi aquele sentimento. Uma das grandes sacadas geniais feitas em disco está aqui, em O Canto das Três Raças, cantada pela brasileira Clara Nunes em um ano difícil como o de 1976, produzido Paulo César Pinheiro. Um disco que merece ser um Hino Nacional Brasileiro.


O Canto das Três Raças – Clara Nunes

Nota 10

Marcelo Teixeira

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Mariene de Castro se transforma em Clara Nunes


 

Homenagem à Guerreira
Homenagear Clara Nunes não é uma das tarefas mais fáceis para uma cantora que é pouco conhecida no cenário musical, ainda mais para a cantora guerreira Mariene de Castro. Considerada por muitos como a nova Clara (título que já foi utilizado por Vanessa da Mata em início de carreira), Mariene segue com total maestria no lançamento de seu DVD em homenagem à grande guerreira maior, a cantora que deu voz e vida ao samba e que abriu caminhos para Alcione, Dona Ivone Lara e Leci Brandão brilharem. Cantar foi uma das maneiras que Clara conseguiu mostras as pessoas toda a sua qualidade e profissionalismo e, de quebra, conseguiu angariar uma legião de fãs espalhados pelos quatro cantos do Brasil, transformando-se num ser de luz, com uma radiação pura e profunda, que talvez nenhuma outra cantora tenha. Sendo uma sabiá (apelido dado com carinho por Vinicius de Moraes), Clara foi uma das maiores cantoras do país e aqui no Mais Cultura, ela alcançou o segundo lugar na seleta lista das trinta maiores cantoras do Brasil.

A consternação vem do subversão entre a vontade e as dificuldades de vida e Clara teve algumas dificuldades na vida. A missão de Clara talvez tenha sido cumprida e ouvir Minha missão, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, trata de uma criação e resignificação da vida pela canção, pelo canto, no cantar. O sujeito canta a própria dor que carrega o mundo e há falta de felicidade: Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já / Tanto sofreu, sibila Mariene de Castro (Ser de luz - uma homenagem a Clara Nunes, 2013). O cantar é oferecido, então, como uma garrafada de ervas consumidas –  pois cantar cura.

Canto para anunciar o dia / Canto para amenizar a noite / Canto pra denunciar o açoite / Canto também contra a tirania / Canto porque numa melodia / Acendo no coração do povo / A esperança de um mundo novo / E a luta para se viver em paz, canta Mariene de Castro com a deprimida vitalidade de quem vivencia as ansiedades do súdito da canção. Dor que rima com entrega lúcida à vida. Dor consciente dos prazeres e dos infortúnios de viver. Tudo isso gira na voz quente e épica de Mariene de Castro.

Determinações, nada deterministas, ao contrário, tomadas mesmo como signos do viver, engendram o fazer cancional, por movimentar, organizar e reapresentar sabedorias coletivas e comuns inerentes ao humano. Quando eu canto, a morte me percorre / E eu solto um canto da garganta / Que a cigarra quando canta morre / E a madeira quando morre, canta, diz Clara Nunes. Cantar é, portanto, interferir da dicotomia vida e morte.

Penso que acreditar que apenas a tradição, como se esta não dependesse da traição a si mesma – da inovação – para se reinventar e permanecer como tal (tradição), contém o núcleo luminoso da identidade nacional, é deixar de entender para que se canta: para anunciar o dia / para amenizar a noite / pra denunciar o açoite / também contra a tirania. E as mídias de reprodução têm servido de aliadas da preservação e da afirmação de identidades e culturas, ao revelar e disseminar continuamente o tupi e o alaúde, mitos e essências de brasilidades. Quando eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de Deus, canta Mariene.

O cancionista – a neo-sereia, porque midiatizada – é o médium, a mediação orgânica, das sereias, musas, dos santos, orixás, mitos em complexo signo de rotação, no Brasil. Mariene de Castro apresenta uma voz de timbração forte, de mulher guerreira, sensual e nossa, brasileira, entre a sala e o terreiro, quente. A dicção está cheia de vigor e na própria entoação verificamos uma afirmativa certeza da beleza repleta de fulgor e encanto. A vida pulsa aqui, na voz de quem sabe para que canta: para remelexer a estrutura do nosso instinto caraíba.

Clara Nunes nos deixou em pessoa física. Mariene de Castro a interpretou, apenas. A semelhança entre as duas é existente e cabível de comparações verdadeiras e similares. A luz ainda não se encerrou no fim do túnel e nem a presença de Clara se escondeu no mais profundo breu. Mariene veio para comprovar que ainda temos muito o que saldar a nossa guerreira filha de Ogum com Yansã.

 

Um Ser de Luz (Homenagem a Clara Nunes) / Mariene de Castro

Nota 10

Marcelo Teixeira

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

19º Maior Cantora do Brasil: Elba Ramalho


Elba entre as melhores
Dona de uma voz inconfundível e de uma musicalidade arrebatadora, Elba Ramalho é considerada a rainha do Nordeste, tamanho a sua popularidade mundo a fora e a sua luta em preservar a sua cultura e seu povo no topo de qualquer parada. Em 1996, recebeu o prêmio de Melhor show do Ano, pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo. Em 2008, Elba comemorou trinta anos de carreira, contabilizando mais de seis milhões de cópias vendidas dos trabalhos. É bicampeã do prêmio Grammy Latino, pelos discos: Qual o Assunto Que mais Lhe Interessa?, lançado em 2007 e Balaio de Amor, lançado em maio de 2009, na categoria Melhor Álbum de Raízes Brasileiras - Regional e Tropical. Em 1996, lança o elogiado e bem-sucedido CD Leão do Norte, que marcou a estreia na gravadora BMG e vendeu mais de 300 mil cópias, exaltando a cultura nordestina e pernambucana (com a faixa-título de Lenine e Paulo César Pinheiro). O espetáculo homônimo foi dirigido por Jorge Fernando e obteve relevante sucesso no Brasil inteiro, arrematando o prêmio de Melhor show do ano, pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo e também originou um VHS contendo os melhores momentos do espetáculo. Naquele mesmo ano, excursiona com o espetáculo O grande encontro, juntamente com Alceu Valença, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo. O primeiro disco da trilogia vende mais de um milhão de cópias, trazendo clássicos da MPB e da música nordestina.

 Em 1997 chegou às lojas o disco Baioque, composto basicamente de regravações de músicas urbanas de autores nordestinos, como Raul Seixas (S. O. S.), Belchior (Paralelas), Ednardo (Pavão misterioso), Zé Ramalho (Vila do sossego), Caetano Veloso (Os argonautas), Gilberto Gil (Vamos fugir), Lenine (Relampiano), Alceu Valença (Ciranda da rosa vermelha), dentre outros; assim como o trabalho anterior, este também foi produzido pelos músicos Robertinho do Recife que também foi responsável por alguns arranjos e regência. O espetáculo bisou a parceria com Jorge Fernando e o sucesso do espetáculo baseado no disco anterior e a reedição deste CD trouxe a faixa-bônus Paris, que não constava da versão original. Graças ao sucesso do projeto O grande encontro, foi lançado um segundo volume do álbum, mas desta vez só não contou com a participação de Alceu Valença, além de excursionar pelo Brasil inteiro; o repertório deste trouxe sucessos dos três artistas.

Em 1998 lança o CD Flor da Paraíba, o último da trilogia produzida por Robertinho de Recife, trazendo algumas regravações e canções inéditas de compositores nordestinos, priorizando canções no estilo do forró. O título do álbum é inspirado em uma dedicatória feita, há muitos anos, pelo cantor e compositor Caetano Veloso, quando a cantora acabara de chegar ao Rio de Janeiro para despontar no meio musical.

Ela Ramalho é uma cantora e atriz brasileira. Vencedora de um prêmio, ainda enquanto atriz, por sua interpretação de O meu amor com Marieta Severo em 1978, sendo esta música de Chico Buarque. Recebeu da Associação de Críticos de Arte de São Paulo prêmio de Melhor Show do Ano, em duas ocasiões: em 1989 pelo show Popular Brasileira e em 1996 pelo show Leão do Norte.

Sua primeira experiência musical veio em 1968, tocando bateria no conjunto feminino As Brasas. Posteriormente, o grupo se transformou de musical para teatral. Contudo, Elba continuou a cantar e a participar de festivais pelo Nordeste brasileiro. Em 1979, lançou seu primeiro álbum, Ave de Prata. Em 2009, Elba fez 30 anos de carreira e celebrou os mais de 6 milhões de discos vendidos.

Por toda a sua música e sua conquista, que Elba Ramalho chega ao décimo nono lugar no ranking das melhores cantoras brasileiras de todos os tempos.

 

19º Lugar: Elba Ramalho

As 30 Maiores Cantoras Brasileiras de Todos os Tempos

Marcelo Teixeira

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

29º Maior Cantora do Brasil: Simone


Simone e seu romantismo
Na história da MPB a tradição romântica de Simone foi intensificada nos anos 1980 e os temas de amor romântico e paixão, foram amplamente explorados por diversos cantores e compositores. Simone, que desde o início da carreira interpretou predominantemente canções românticas, figura dentre elas e é por isso que ela entra na categoria de cantora romântica. O repertório abrange mais de 380 interpretações, um dos mais vastos e diversificados dentre as vozes femininas, compondo um verdadeiro mosaico de estilos. O amor romântico ou idealizado, a paixão, (Começar de Novo, Jura Secreta, Corpo, Medo de Amar nº 2, Raios de luz, Lenha), o samba (O Amanhã, Disputa de Poder, Ex-amor) e a religiosidade (Cantos de Maculelê, Reis e rainhas do Maracatu, Então é Natal, Ave Maria, Jesus Cristo) são os mais recorrentes na obra. Ao longo da infância e juventude as principais referências deste repertório romântico foram Roberto Carlos, Milton Nascimento e Maysa Matarazzo, de quem é grande fã e que grande influência exerceu na carreira, Dolores Duran, Ângela Maria, Nora Ney e Elizeth Cardoso -- as maiores expoentes do gênero samba-canção ou fossa. O gênero, comparado ao bolero, pela exploração e exaltação do tema amor-romântico ou pelo sofrimento de um amor não realizado, foi chamado também de dor-de-cotovelo.

O samba canção (surgido na década de 1930) antecedeu o movimento da bossa nova (surgido ao final da década de 1950, em 1957), com o qual Maysa já foi identificada. Mas este último, herdeiro do jazz norte-americano, representou um refinamento e uma maior leveza nas melodias e interpretações em detrimento do drama e das melodias ressentidas, da dor-de-cotovelo e da melancolia. O legado de Maysa, ainda que aponte para dívidas com a bossa, é o de uma cantora mais dramática e a voz é mais arrastada do que as intérpretes da bossa e por isso aproxima-se antes do samba-canção e do bolero. O declarado gosto pessoal da cantora por boleros advém desta herança musical. Ao lançar o CD Fica Comigo Esta Noite, comentou que bolero é bolero, o que é fácil é fácil.

Já como intérprete, Ivan Lins, Vitor Martins, Milton Nascimento, Fernando Brant, Paulo César Pinheiro, Gonzaguinha, Chico Buarque, Martinho da Vila, Fátima Guedes, João Bosco, Aldir Blanc, Isolda, Roberto Carlos, Hermínio Bello de Carvalho, Paulinho da Viola, Sueli Costa e Abel Silva são os compositores com maior número de interpretações na sua voz. O repertório atual inclui ainda Zélia Duncan, Cássia Eller, Adriana Calcanhotto, Aldir Blanc, Joyce, Martinho da Vila, Ivan Lins, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho e Lenine.

Simone é uma das grandes cantoras deste país, sem sombra de dúvidas e precisamos manter viva esta categoria a qual ela pertence.

 

29º Lugar: Simone

As 30 Maiores Cantoras do Brasil de Todos os Tempos

Marcelo Teixeira

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Falange Canibal, de Lenine: perfeito!


 

O ótimo disco de Lenine
Mantendo seu caminho de agregador, Lenine transforma um projeto coletivo numa obra bela e forte que ele intitulou de Falange Canibal, um disco muito bom, excelente e que denota toda a versatilidade do músico pernambucano. O álbum tem os melhores músicos da atualidade: Vulgue Tolstoi (grupo que forneceu o parceiro constante guitarrista Júnior Tolstoi), Monoaural (Kasin e Berna Ceppas), Tom Capone (produtor infelizmente falecido prematuramente, que aqui também contribui com programações, guitarra, baixos e otras cositas más), Xandão (guitarrista do Rappa e Caroçu). Além dos amigos compositores, dividem com o anfitrião quase todas as músicas os grandes compositores Carlos Rennó, Ivan Santos, Bráulio Tavares, Sérgio Natureza, Dudu Falcão, Paulo César Pinheiro e Lula Queiroga. A produção também é dividida por muita gente, incluindo Lenine, Tom Capone, Mauro Manzoli.

Gosto muito da sonoridade moderna e caprichada do Lenine. Ecos do ão fala sobre o fonema característico da nossa língua (e sempre difícil para estrangeiros) como linha condutora para também refletir sobre nós brasileiros.

nós temos violência e perversão

mas temos o talento e a invenção

desejos de beleza em profusão

e ideias na cabeça coração

a singeleza e a sofisticação

o choro, a bossa, o samba e o violão

mas se nós temos planos, e eles são

o fim da fome e da difamação

por que não pô-los logo em ação?

tal seja agora a inauguração

da nossa nova civilização

tão singular igual ao nosso ão

e sejam belos, livres, luminosos

os nossos sonhos de nação

 

Trecho de Ecos do Ão, de Lenine

 

Em seguida uma mais lenta, Sonhei, bela como de costume e com aquele violão percussivo e extremamente bem tocado. Mais uma com boa mistura de sons eletrônicos e acústicos, inclusive um bonito oboé. Umbigo começa com um violão magrinho e bateria do cara do Living Colour, Will Calhoun. Também a voz em inglês de Ani Difranco (alguém sabe quem é ela?), Eumir Deodato (o cara existe de verdade!) no hammond e piano elétrico com mão pesada. Com um trecho que diz gosto muito de conversar comigo/ umbigo meu nome é espelho/ não dou ouvidos nem peço conselhos/ umbigo meu nome é certeza/ só é real o que convém à realeza, a música e o disco já valem muito.

Lavadeira do rio tem uma história engraçada: gravada originalmente por Virginia Rosa em seu primeiro disco solo, Batuque, a música se chamava A Rita, mas Chico Buarque compusera nos anos 1960 a bela A Rita, que ficou conhecida nas vozes de Nara Leão e Gal Costa posteriormente. O público estava começando a ficar confuso com duas músicas com o mesmo título e, por este motivo, Lenine resolveu rebatizar a música e, talvez por esta conscientização, Lenine resolveu cantá-la neste disco. A Lavadeira do Rio começa meio balançada, eletrônica até, com uma guitarra invertida discreta. Depois vira um bom rockão! Tem até aquele clichê de bateria só com vocais empolgantes. Esta aqui tem participações especiais da galera do Skank (sem o Samuel Rosa, ufa!) e da Velha Guarda da Mangueira no coro.

Encantamento é uma montagem/colagem de várias músicas, emenda e surge a original do Lenine como se tudo levasse a isso. Nem sol, nem a lua, nem eu é daquelas belíssimas que Lenine compõe, lenta, quase sussurrada, com uns uivos caninos ou lupinos no fundo. Entre as participações especiais, Will Calhoun na wave drum e Xandão na guitarra. Caribantu é só voz e muitas percussões, a cargo do Cambaio (a pós-coisa), seja lá o que for isso, talvez um coletivo de percussão. A Velha Guarda da Mangueira também faz aquele coro bonito.

Quadro-negro é mais uma das bonitas, aqui com efeitos eletrônicos (até na voz) e a participação do Marcelo Lobato (Rappa) na bateria, teclados, theremin e vibrafone. Quem vai pagar a conta?/ quem vai lavar a cruz?/ o último a sair do breu/ acende a luz.

Chega a mais bela do disco, O silêncio das estrelas, com um arranjo lindo e criativo de cordas, incluindo um recurso arriscado, o glissando (os instrumentos vão subindo/descendo sem escalas nas notas temperadas, dando a impressão de desafinação). Solidão/ o silêncio das estrelas/ a ilusão/ eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos/ como um deus, e amanheço mortal. Termina com uma sanfona bonita, a cargo de Regis Gizavo.

No pano da jangada é muito legal, com uma percussão que na verdade são os pés do Lenine na areia e vozes, com vocais dobrados e processados. Viva a tecnologia e a criatividade! Rosebud (o verbo e a verba) é um conto divertido, uma música latina suingada e quebrada. Participação do grupo Yerba Buena nas vozes, percussões/bateria e trompete cucaracho.

E o fim é pra cima, a música com participação integral do Living Colour, O homem dos olhos de raio X que entrou para a minha galeria das melhores músicas do Lenine. Rock balançado e percussivo. Viva o nosso herói pernambucano.

 

Falange Canibal / Lenine

Nota 10

Marcelo Teixeira

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Claridade (1975), um dos melhores discos de Clara Nunes


Repercussão boa com este disco
Quando eu era criança, o disco que mais se ouvia na minha casa era os de Clara Nunes, pois minha mãe era (e ainda é) fã condicional desta que foi a maior cantora de todos os tempos. Cresci ouvindo suas músicas, suas canções, sem me dar conta de que Clara já estava morta e que eu não entendia bulhufas do que ela estava cantando, mas aquela voz, aquele canto, aquelas músicas me agradavam de um jeito, que acabei crescendo e virando crítico musical devido à sua musicalidade. Devo muito à Clara Nunes por eu gostar de boa música. Hoje trago mais uma homenagem à grande Guerreira e tenho dois motivos para trazer este disco em especial para a coluna de hoje: Claridade, de 1975, por um lado, conta com um repertório de primeira, aliado ainda ao sensacional bandolim de Joel Nascimento e excelentes arranjos; enquanto, por outro lado, me faz retornar à minha infância quando escutava essas canções na vitrola da minha mãe no nosso antigo casarão, aqui em São Paulo.

Demonstrando sua predileção por compositores da Portela, Claridade abre em grande estilo com O Mar Serenou, de Candeia. Trata-se de uma interpretação magnífica de uma canção que marcou um estilo, canção até hoje relembrada nas melhores rodas de samba. O mar serenou, quando ela pisou na areia... Quem samba na beira do mar, é sereia... Com seu vestido branco, Clara Nunes certamente é a melhor imagem dessa canção.

O Sofrimento de quem Ama, de Alberto Lonato, e Tudo é ilusão, de Éden Silva e Raul Moreno, (5ª canção do disco) demonstram que além de grande intérprete, Clara Nunes é rainha na arte de transmitir alegria e esperança com temas tristes. Sua influência com temas afros (esteve várias vezes na África) atinge o apogeu em Deusa dos Orixás, de Romildo e Toninho, uma maravilhosa canção em que se misturam elementos do samba e do candomblé.



Vai, amor

Pra toda vida

Não olhes para trás

Na hora da partida

Não me mandes lembranças

Nem carta amorosa

Vivias num perfeito mar de rosas



Trecho de Vai Amor (Monarco / W. Rosa)



Pausa para respirar: com toda garra e afinação, Clara Nunes dá ao clássico da música brasileira Juízo Final, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, a sua interpretação definitiva. É o juízo final, a história do bem e do mal...quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer... Música para arrepiar! Se o lado A do vinil fecha em ritmo mais lento e triste com Valsa de Realejo, o lado B compensa abrindo com um samba de primeira de João Nogueira e Paulo César Pinheiro (seu marido a partir dessa época). Para de beber, compadre...Meu compadre deixa disso...Larga essa mulher de lado...Lembra do teu compromisso.

Candeia volta a ser cantado em O Último Bloco: E hoje volto cantando...me abraço ao violão...e marco o compasso junto do coração. Outra joia rara desse disco. Depois de outro samba em alto astral com Ninguém tem que achar ruim, de Ismael Silva, Clara Nunes diminui o ritmo para lembrar que Às Vezes Faz Bem Chorar, de Ivor Lancelotti, e antecipa o clima de despedida com Vai Amor (Monarco/W.Rosa). E para fechar no maior estilo e sem espaço para rancor, Clara emenda Que Seja Bem Feliz de Cartola: Que seja bem feliz / E leve-me na mente / Que cresçam suas glórias / E as minhas lágrimas contentes.

Nem sempre a qualidade combina com vendagem, mas até nisso esse disco surpreendeu, ultrapassando a marca de 600 mil cópias vendidas, numa clara demonstração de que tem muita gente de bom gosto. Foi o primeiro disco de uma cantora – mulher – que ultrapassou essa marca, logo depois disso veio Maria Bethânia com Álibi.

Com este disco, Clara Nunes se firma como uma das maiores e melhores cantoras de todos os tempos. Felizmente deixou obras como esse disco para que a voz dela continue ecoando nos nossos corações.



Claridade / Clara Nunes

Nota 10

Marcelo Teixeira

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O Fim da MPB?


Mesmo eu tendo criado a lista dos 10 Melhores Cantores dos Últimos 10 Anos e as 20 Melhores Cantoras dos Últimos 10 Anos para o Mais Cultura!, destacando nomes da nova seara musical, como Lucas Santtana, Edu Krieguer, Leo Cavalcanti, Luísa Maita, Barbara Eugenia e Márcia Tauil, o panorama musical brasileiro vem se notabilizando nos últimos anos por uma característica insofismável: a falta de renovação da MPB, a denominada Música Popular Brasileira - que caminha à extinção. Os grande nomes são os mesmos da década de 60 do século passado, todos na casa dos 70 anos de idade: Chico Buarque, Paulo Cesar Pinheiro, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Francis Hime e mais alguns menos votados. Das grandes cantoras restaram apenas Maria Bethânia e Gal Costa, tendo em vista que as duas maiores estrelas, Elis Regina e Clara Nunes partiram precocemente. Quando se olha os compositores e cantores de MPB mais novos percebe-se muito pouca coisa: com boa vontade Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Mariana Aydar, Roberta Sá, Zélia Duncan, Vanessa da Mata e... só. É muito, muito pouco.

A que se deve tal fenômeno? Acredito que haja várias causas, mas irei me concentrar naquela que para mim é uma das principais: a mudança do perfil da chamada cultura de massa brasileira e em especial sua veiculação nos órgãos de longo alcance - basicamente televisão aberta e rádios FMs. Até a década de 90, mais ou menos, coexistiam diversas formas de música na televisão aberta e nas rádios FMs - estas mais segmentadas. Desde a MPB típica até músicas internacionais, passando por um lado mais popularesco. Até mesmo a música clássica tinha seu espaço, ainda que nas manhãs de domingo. Haviam festivais de música e posteriormente programas como o Chico e Caetano, na década de 80 na Globo. Volta meia programas como o Som Brasil e Fausto Silva abrem espaço para esta música.

Entretanto, estamos assistindo a uma crescente homogeneização da chamada cultura de massa, de grande veiculação, baseada em música popularesca, descartável e de consumo imediato. São os Luans Santanas, os Telós, os Jorge e Mateus e os Alexandres Pires da vida que martelam nossos ouvidos dia após dia na televisão e no rádio. Outras manifestações musicais tornaram-se guetos, na prática - talvez com a exceção que confirma a regra do samba, mas sobre isto falarei depois.

Historicamente a demanda por este tipo de produto sempre coexistiu com outras manifestações, mas por que se tornaram dominantes? A meu ver esta demanda foi criada pelo interesse da indústria cultural como um todo em estabelecer uma espécie de linha de produção musical: música descartável, de mais fácil elaboração, mais rápida produção e calcada em elementos visuais e em marketing agressivo. Paralelamente, por fatores que não discorrerei aqui este tipo de música tornou-se monopolista nos veículos de massa, especialmente na televisão aberta.

O que temos? Música descartável, muitas vezes diluições de gêneros originais, com letras paupérrimas e ritmo acelerado - para contagiar o público. Então temos gêneros como o pseudo-sertanejo, o sertanejo e o forró universitário, o pagode romântico (que de samba e pagode não tem absolutamente nada) e este pop indefinível de Luans Santanas e Telós como monopolizadores dos grandes espaços de divulgação.

Para a indústria é algo confortável, porque é uma música de elaboração mais rápida e que tira do artista a grife e o domínio da arte. Hoje a indústria fonográfica e a televisão não precisam esperar a inspiração de um Chico Buarque ou de um Paulinho da Viola, por exemplo: basta acelerar o ritmo, rimar amor com dor, dizer que vamos pular no tcheretetê e que vai rolar a festa, com um rostinho bonito - que muitas vezes sequer canta - e aguardar o tilintar das moedas na caixa registradora.

Na prática é uma linha de montagem sem perenidade: daqui a dez anos ninguém vai se lembrar de Luan Santana, por exemplo - embora aos 20 anos ele já tenha um patrimônio de 50 milhões de reais, o que é espantoso. Este tipo de música descartável sempre existiu, mas tendo o monopólio atual da grande mídia está caminhando para em duas ou três décadas ser o único tipo de expressão musical brasileira. É um modelo que interessa especialmente à indústria por tirar a propriedade intelectual do artista e transferi-la para ela mesma.

E a demanda por este tipo de música acabou sendo criada através do monopólio dos meios de comunicação. O leitor pode pensar que a falta de cultura média do brasileiro também contribui, mas lembro que a escolaridade aumentou nas últimas décadas, não diminuiu. Por outro lado, como se pode gostar de algo que não se conhece, ainda mais quando o acesso à TV a cabo ainda não alcança sequer a metade da população brasileira?

E o público médio aprendeu a gostar deste tipo de música por não ter outra opção em grande escala, de modo que hoje já há uma retroalimentação: o grande público pede e consome cada vez mais este tipo de produto. Outras manifestações musicais, hoje, se restringem a guetos a termos nacionais, restritos à televisão a cabo e a rádios bastante segmentadas e até em espaços que deveriam ter o seu público segmentado esta música descartável está penetrando.

O caso do samba de raiz é uma exceção que confirma a regra: o gênero está se renovando e se reinventando a partir dos mais velhos, bebendo na fonte deles e gerando um produto que é moderno justamente por ser tradicional. Não alcança o grande público de massa a não ser marginalmente, mas encontrou seu público e, na medida do possível, vai bem, obrigado. Contudo precisou o gênero ser praticamente extinto na década de 90 para que houvesse esta renovação baseada, ironicamente, nesta volta às origens. De certa forma o samba de enredo - que passou por um processo de mediocrização semelhante nos últimos 15 anos - começa a trilhar timidamente o mesmo caminho: renovar-se bebendo em sua origem.

A MPB, porém, caminha para sua extinção ao menos da forma como a conhecemos. Como expliquei acima a música popularesca, mais que dominante, está se tornando monopolista.

A indústria agradece. E nossos ouvidos sofrem.



Marcelo Teixeira