quinta-feira, 4 de abril de 2013

Mariene de Castro se transforma em Clara Nunes


 

Homenagem à Guerreira
Homenagear Clara Nunes não é uma das tarefas mais fáceis para uma cantora que é pouco conhecida no cenário musical, ainda mais para a cantora guerreira Mariene de Castro. Considerada por muitos como a nova Clara (título que já foi utilizado por Vanessa da Mata em início de carreira), Mariene segue com total maestria no lançamento de seu DVD em homenagem à grande guerreira maior, a cantora que deu voz e vida ao samba e que abriu caminhos para Alcione, Dona Ivone Lara e Leci Brandão brilharem. Cantar foi uma das maneiras que Clara conseguiu mostras as pessoas toda a sua qualidade e profissionalismo e, de quebra, conseguiu angariar uma legião de fãs espalhados pelos quatro cantos do Brasil, transformando-se num ser de luz, com uma radiação pura e profunda, que talvez nenhuma outra cantora tenha. Sendo uma sabiá (apelido dado com carinho por Vinicius de Moraes), Clara foi uma das maiores cantoras do país e aqui no Mais Cultura, ela alcançou o segundo lugar na seleta lista das trinta maiores cantoras do Brasil.

A consternação vem do subversão entre a vontade e as dificuldades de vida e Clara teve algumas dificuldades na vida. A missão de Clara talvez tenha sido cumprida e ouvir Minha missão, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, trata de uma criação e resignificação da vida pela canção, pelo canto, no cantar. O sujeito canta a própria dor que carrega o mundo e há falta de felicidade: Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já / Tanto sofreu, sibila Mariene de Castro (Ser de luz - uma homenagem a Clara Nunes, 2013). O cantar é oferecido, então, como uma garrafada de ervas consumidas –  pois cantar cura.

Canto para anunciar o dia / Canto para amenizar a noite / Canto pra denunciar o açoite / Canto também contra a tirania / Canto porque numa melodia / Acendo no coração do povo / A esperança de um mundo novo / E a luta para se viver em paz, canta Mariene de Castro com a deprimida vitalidade de quem vivencia as ansiedades do súdito da canção. Dor que rima com entrega lúcida à vida. Dor consciente dos prazeres e dos infortúnios de viver. Tudo isso gira na voz quente e épica de Mariene de Castro.

Determinações, nada deterministas, ao contrário, tomadas mesmo como signos do viver, engendram o fazer cancional, por movimentar, organizar e reapresentar sabedorias coletivas e comuns inerentes ao humano. Quando eu canto, a morte me percorre / E eu solto um canto da garganta / Que a cigarra quando canta morre / E a madeira quando morre, canta, diz Clara Nunes. Cantar é, portanto, interferir da dicotomia vida e morte.

Penso que acreditar que apenas a tradição, como se esta não dependesse da traição a si mesma – da inovação – para se reinventar e permanecer como tal (tradição), contém o núcleo luminoso da identidade nacional, é deixar de entender para que se canta: para anunciar o dia / para amenizar a noite / pra denunciar o açoite / também contra a tirania. E as mídias de reprodução têm servido de aliadas da preservação e da afirmação de identidades e culturas, ao revelar e disseminar continuamente o tupi e o alaúde, mitos e essências de brasilidades. Quando eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de Deus, canta Mariene.

O cancionista – a neo-sereia, porque midiatizada – é o médium, a mediação orgânica, das sereias, musas, dos santos, orixás, mitos em complexo signo de rotação, no Brasil. Mariene de Castro apresenta uma voz de timbração forte, de mulher guerreira, sensual e nossa, brasileira, entre a sala e o terreiro, quente. A dicção está cheia de vigor e na própria entoação verificamos uma afirmativa certeza da beleza repleta de fulgor e encanto. A vida pulsa aqui, na voz de quem sabe para que canta: para remelexer a estrutura do nosso instinto caraíba.

Clara Nunes nos deixou em pessoa física. Mariene de Castro a interpretou, apenas. A semelhança entre as duas é existente e cabível de comparações verdadeiras e similares. A luz ainda não se encerrou no fim do túnel e nem a presença de Clara se escondeu no mais profundo breu. Mariene veio para comprovar que ainda temos muito o que saldar a nossa guerreira filha de Ogum com Yansã.

 

Um Ser de Luz (Homenagem a Clara Nunes) / Mariene de Castro

Nota 10

Marcelo Teixeira

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