quinta-feira, 30 de julho de 2015

Tropicália (1968): um álbum precioso e inacabado


1968 foi um ano emblemático para a história da música popular brasileira: de um lado tinha a turma de Roberto Carlos e sua Jovem Guarda, do outro os festivais de música da TV Record, de um outro lado horizontal tinha a Bossa Nova e suas nuances perfeitas para enaltecer o que era belo e mais sagrado e por um curto espaço de tempo, Caetano Veloso e Gilberto Gil se juntara a Nara Leão, Os Mutantes, Rogério Duprat e Gal Costa para criarem um movimento audacioso e inteligente, que ganharia o nome de Tropicália. Quase cinquenta anos nos separam do fatídico ano de 1968, época da ditadura militar no Brasil, para os dias atuais, em que a música carece de muita criatividade e audácia, para ficarmos nas lembranças temidas pelo disco e por depoimentos de quem vivenciou aquele precioso tempo. No meu caso, apenas carrego na bagagem cultural o que se falam ou escrevem sobre o movimento, tendo em vista que eu nem era nascido para poder contar história. Mas até hoje, muitos intelectuais, musicólogos, filósofos e críticos de música tentam explicar a necessidade poética e harmônica de Tropicália ou Panis et Circencis (1968 / Philips / 30,00), disco em que há uma miscelânea de vozes e uma caricatura autoral persistente dos artistas mais badalados de então. Caetano Veloso e Gal Costa eram amigos e já tinham gravado Domingo, música que abriu várias fronteiras para ambos, enquanto Gilberto Gil ainda engatinhava no cenário musical apenas nos bastidores, mas sua presença fora marcante e precisa para dar o pontapé inicial em um dos movimentos mais importantes não apenas para os criadores, como para toda uma geração. Em seu livro biográfico Verdade Tropical (1997), Caetano disse que Gil falava demais e com certa eloquência verbal que passara a ser hermético e cansativo demais, enquanto os demais tentavam falar a língua nativa, natural, habitual. Mas o que muitos talvez não entendessem na época, é que essa maneira de Gil falar fora totalmente importante para o surgimento de canções assimétricas, como Misere Nobis, que abre o álbum. Perguntas até hoje não respondidas persistem em nossos imaginários: por que Maria Bethânia, a irmã de Caetano e até então a única a brilhar efusivamente em teatros lotados, não participara do disco? Por que Gilberto Gil segura a foto emoldurada em quadro de Chico Buarque? Por que Nara Leão pertenceu ao grupo tropicalista? Apenas, talvez, a última pergunta tenha resposta e ainda assim contraditória. Nara Leão gostava de perambular por todas as esferas musicais, tais como a própria bossa nova, a MPB, o samba de morro e para ela não seria novidade pisar em ovos tropicalistas. Deu certo essa iniciativa. Mas uma quarta questão surge: por que Tom Zé, baiano de Irará, que era tropicalista como os outros, não participara do momento de fato, mesmo aparecendo na capa do álbum? A participação de Tom Zé fora pequena e passou desapercebida pelo grande público da época e até hoje associam a imagem do cantor à outras fases tropicalistas, menos nesse disco. Sua única canção, Parque Industrial, fora cantada por todos, menos por Nara, que cantou apenas Lindoneia, a quarta faixa do disco. Podemos afirmar então que Nara Leão era tropicalista? Nas palavras de Caetano, sim, ela pertencera ao grupo, mas isso não deixa de ser evidente, assim como a meia participação de Tom Zé. Seja como for, Tropicália é um disco que fora iniciado sem a pretensão de ser concluído: havia ali a intenção clara e objetiva de seus líderes, Caetano e Gil, em influenciar mudanças grotescas no mundo moderno. O ano de 1968 eclodia de um militarismo sem igual e fazer ou falar qualquer coisa resultaria em morte, mas a turma da Tropicália queriam mais: queriam ser alvo de visão e audição. Ganharam o mundo depois que Caetano Veloso tivera contato imediato com a obra de Glauber Rocha, o lendário cineasta morto precocemente e de Hélio Oiticica, o pai do tropicalismo, que influenciou e muito a obra e a vida dos músicos envolvidos. A propagação da causa tropicalista pelo disco Tropicália ou Panis Circences persevera por quase cinquenta anos com o mesmo brilho e com a mesma simbologia desde 1968 já com a intenção de nunca terminar. Havia uma necessidade incessante de Caetano e Gil preverem que o álbum seria histórico? Talvez sim. A capacidade intelectual de todas as cabeças pensantes fizera do disco uma obra-prima sem igual, elogiado até hoje por amantes e críticos da música universal. O ideário tropicalista foi formado não apenas pelas discussões ardilosas de seus condutores e/ou pelos ajuntamentos de intelectuais, como a dos poetas concretos Augusto de Campos e Décio Pignatari. Apesar de impactante para o momento e diante da importância dessa coleção de ideias e fatos revolucionários que formigaram a estrutura cultural nacional, é preciso lembrar que tudo girava em torno de discos sensacionais lançados naquele tempo e contra a censura enclausurada de outros movimentos que persistiam em lograr para um ponto certo no lugar certo. E Tropicália ou Panis et Circences permanece até hoje como reduto de um álbum magnífico, precioso e atual a tal ponto de nunca ser concluído.

 

Tropicália (1968): um álbum precioso e inacabado

Marcelo Teixeira

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A eloquência distinta de Carbono, novo álbum de Lenine


Experimentos químicos de Lenine
Lenine é um tipo raro de cantor que conseguiu sair da atmosfera popular para adentrar, definitivamente, no âmbito da intelectualidade e a prova maior disso são suas músicas, cada vez mais rebuscadas e refinadas, não deixando margem para que a população sem cérebro possa compartilhar o que é belo e universalmente para poucos. Seu último trabalho, Chão (2011) foi uma experiência causada entre o efeito da solidão do cantor e a fase de aceitação do público, que estranhou de início o novo formato de se fazer música do cantor e compositor pernambucano, mas que aos poucos essa magia e esse encanto tomaram partido alto e maior dentro do universo leniniano. Quase no mesmo caminho que o álbum anterior, Carbono (2015 / Universal Music / 29,99) é um disco atemporal, fugindo de modismos e tropicalismos regionais que o consagraram e sendo ele mesmo: Lenine, um cantor pernambucano que tenta encontrar a cada verso uma explicação para o inexplicável, um ato, um hiato, uma sonoridade diferente e ampla, um significado para suas canções e para o desejo de se fazer canções. Carbono nasceu dessa necessidade conjunta de exemplificações: uma corrente entre as músicas para tentar decifrar os anseios da química e o elo entre Chão, com suas sonoridades ambivalentes e subsequentes da eloquência distinta. Há lirismo temperado com loucura e um certo desespero de Lenine na preocupação geral sobre o ambiente e a Terra, tópicos contestados em músicas que ministram água, carbono, pó, terra entre outros argumentos da natureza. Lenine está mais denso, mais calmo e até mesmo mais confortável para fazer de Carbono seu porto seguro de ilusões maniqueístas e está em um momento em que sua música pede passagem para o que realmente pede a música popular brasileira num todo: a qualidade musical. O cantor vem há um certo tempo se mostrando presente no lendário sistema de qualificação profissional, lançando discos mais distantes da plateia assimétrica de caráter duvidoso para figurar entre o intelecto e a formação de massa cerebral. Em Carbono percebe-se o instinto do saber voluntário do cantor, atestado em canções que vão da sofisticação ao regional sem precisar ser caricato ou descer um patamar de popular. O disco tem uma limpeza sonora incrível e o erro de Lenine, talvez, tenha sido esse: já que o cantor queria experimentar o lado minimalista dos ruídos em Chão, ele poderia usufruir para que esse novo trabalho tivesse sons que realmente atendem ao título. Há um distanciamento e uma proximidade muito larga entre um projeto e outro, mas Carbono consegue ser mais poético, mais autoral, mais visível e mais compreendido que os discos introspectivos do cantor lançados outrora. Mesmo sendo um disco particular, monossilábico (o álbum cai por vezes numa tristeza profunda), anti-tropicalista e pós MPB, Lenine nos mostra um álbum recheado de perguntas sobre o mundo da engenharia química, tentando nos transportar para o mundo daqui há alguns anos. Sua música, nesse quesito, pode explicar muitas coisas.

 

 

Carbono (2015) / Lenine
Nota 8
Marcelo Teixeira

sábado, 18 de julho de 2015

Vamos comer Caetano?


Caetano: seu talento é muito maior que a foto nú
Em seu livro Verdade Tropical (1997 / Companhia das Letras), Caetano Veloso disse em uma das passagens que já era famoso o suficiente para ser reconhecido nas ruas, apontado e comentado nas mesas de bar por conta de seu comportamento e de sua música. Isso fora nos idos anos de 1960. Passados mais de cinquenta anos, o mesmo Caetano Veloso continua sendo reconhecido, apontado, comentado e agora criticado por quase tudo o que faz ou pensa em fazer. Foi assim que muita gente se assustou quando lançou o (excelente) Zie e Zii (2009), em que disse escancaradamente na música Indiferente, que não acreditava em Deus e muita gente ficou indignada com tal revelação; quando o mesmo Caetano gravou um CD com Maria Gadú, em que ambos trocavam experiências no palco, cantando um o repertório do outro e que para muita gente a junção da dupla não soou muito bem; quando Caetano cantou A bossa nova é foda foi um arroubo de insatisfação entre as pessoas (mas essa mesma palavra, foda, fora a responsável por alavancar as vendas e a popularidade do cantor com o excelente e indispensável Abraçaço, lançado em 2013); ou quando Caetano resolve postar suas fotos nas redes sociais. Tudo o que o cantor e compositor baiano faz vira motivo de indignação por parte das pessoas iletradas deste país chamado Brasil. Primeiramente, quem o critica não o conhece. Segundo que quem não conhece a obra de Caetano não merece criticar a postura do cantor. Terceiro que Caetano pode tudo, até postar uma foto de cueca e meia preta ao lado de Carla Perez e de seu marido Xande. Nada contra a rainha do Tchan, até mesmo porque depois que Carla Perez deixou o grupo que a revelou e passou a usar mais a cabeça, passei a ter mais respeito por ela, mas Caetano Veloso está no momento em que ele pode tudo no alto de seus 72 anos. Além de ser um dos cantores do primeiro time da MPB, o cantor pode falar palavrão no meio de uma música (isso ele fizera muitas vezes), pode cantar com quem quiser e pode postar a foto que quiser. Gal Costa já cantara com os seios à mostra e teve uma capa de disco censurada, Maria Bethânia teve parte dos seios expostos em capa de disco, Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Milton Nascimento já posaram a deriva de suas cuecas. Por que Caetano não pode posar com a sua cueca? Acho ridículo a postura de alguns apresentadores, jornalistas e críticos de música que foram para seus postos de trabalho denegrir a imagem do cantor apenas por causa de uma foto! A música de Caetano e sua inteligência estão muito acima de qualquer tipo de foto que venha a ser publicada. Não há nada de anormal com a foto, senão o ato de encontrar os amigos num momento de descontração. Caetano é preciso ser degustado, visto, admirado, ouvido, afinal, ele é um produto brasileiro. E como bem disse Adriana Calcanhotto no CD Marítimo (1998), vamos comer Caetano, vamos degusta-lo.

 


Vamos comer Caetano?
Marcelo Teixeira

sábado, 11 de julho de 2015

O culto a voz de Maria Bethânia


50 anos de Maria Bethânia na MPB
Ao longo de sua carreira, a cantora Maria Bethânia se mostrou como uma interprete maior de sua arte, de sua música, de sua veia cênica e de sua voz. Seu talento nunca foi questionador, mas sempre foi motivo de sondagens por cantoras em início de carreira. Pautada entre o certo e o incerto que dá certo, Bethânia é uma das raras cantoras que consegue comover o Brasil com sua voz poderosa e sua presença marcante de palco. Não é qualquer cantora que consegue chegar aos 50 anos de carreira sendo elogiada por quem realmente entende de música: para se chegar a essa idade comemorativa, é preciso muita disciplina, muita dedicação, meta e foco. E tudo isso Maria Bethânia conseguiu fazer com uma maestria impecável. O título deste artigo foi tirado do livro Verdades Tropicais (VELOSO, Caetano ,  Companhia das Letras, 1997, pag. 58), de onde o cantor e irmão Caetano revela que antes mesmo de Bethânia ser uma cantora profissional, ela já impactava o público com sua voz. O livro, em sua primeira parte, é um retrato fiel das andanças de Caetano e Bethânia por Santo Amaro, na Bahia, e pelo desamor da cantora pela Bahia; assim como posso retratar o livro como sendo um tributo de proteção do irmão para com a irmã e, por final, posso atribuir o livro como ilustração de Caetano defendendo a irmã como sendo uma artista nata dentro de sua própria casa e cujo a viu nascer, crescer e cantar. Maria Bethânia queria ser atriz depois que vira em sua terra natal alguns filmes europeus; se encantara com o mundo de Clarice Lispector e Fernando Pessoa e ao mesmo tempo era sondada a cantar em noites de estreia teatral na coxia e com as luzes apagadas e, assim, havia um mistério enorme em torno da imagem dela. O mistério sempre rondou a vida de Bethânia e o culto em torno de sua voz passou a ser, profissionalmente, como um mantra, uma reza e uma oração aos amantes de sua arte. Mas Bethânia é justamente isso: um misto de cultura, uma assombração de mistérios, uma divindade da música popular brasileira. O primeiro contato com Clarice Lispector foi aos quinze anos, quando leu, emocionada, Legião Estrangeira, publicado na extinta revista Senhor, tendo em vista que o irmão era leitor fervoroso da publicação. Maria Bethânia ficou tão embriagada com esta leitura, que resolveu mostrar sua paixão e sua loucura pela literatura hermética de Clarice. Desta troca de cumplicidades nasceu uma amizade entre a escritora e a já consagrada cantora de MPB, que tinha, entre seus amigos, Vinicius de Moraes, Gal Costa, João Gilberto, Gilberto Gil entre outros. Clarice não perdia os shows de Bethânia: Maria Bethânia é faíscas no palco, dissera a escritora quando a cantora encenou o show Rosa dos Ventos. Não é difícil imaginar que a carreira brilhantemente construída por Bethânia tenha o consentimento de Caetano Veloso para uma visão solidão de profissionalismo dentro da música. No livro isso deixa evidente, mas a própria cantora foi a mentora de sua própria vida artística, cultural e pessoal. São cinquenta anos de música dentro de seu próprio país, dentro de seu segmento, dentro de sua história. Aqui tudo se entrelaça, desde a literatura, a poesia, a música, a voz de Bethânia como um trovão emergente. Ao ouvirmos Bethânia, temos a nítida certeza de que a música está a salvo de tantas ignorâncias musicais que assolam atualmente a cultura de todos nós: graças a Bethânia, somos obrigados a concordar que a música popular brasileira é rica de qualidade, categoria e civilização. Há na cantora uma sombra assustadora de energia positiva, capaz de nos enrolar em um manto azul e branco sagrado de proteção contra mazelas estereotipadas e desengonçadas. Garanto que não é qualquer cantora que chega aos cinquenta anos de carreira sendo coerente com sua musicalidade e com sua motivação em cantar e inspirar novas cantoras e com o respeito para com a música popular brasileira. O culto ao canto de Maria Bethânia é muito mais que isso.

O culto ao canto de Maria Betânia
Marcelo Teixeira