sábado, 22 de outubro de 2016

Cala a boca, João!


Voz e Violão: excelente
Há quem o odeie e há os que o ama! Há também aqueles que ficam neutros quando o assunto é João Gilberto, um ícone da Bossa Nova e um dos pais do movimento que inspirou as pessoas a cantarem em ritmo mais lento e tendo como companheiros um banquinho e um violão. Não é fácil ser João, um gênio da música popular brasileira que hoje vive mais recluso do que nunca em seu apartamento, nos Estados Unidos. Obviamente que Cala a Boca, João (título deste artigo) foi uma referência à música de Dorival Caymmi, Cala a Boca, Menino (1973), pois João é um típico cantor que odeia berros, sobressaltos, devaneios e qualquer coisa que o deixa atormentado.  Com o surgimento de Chega de Saudade a reviravolta na música brasileira se fez presente e a revolução musical foi uma constante. A influência notória de João Gilberto foi fundamental para todo esse universo novo e para a posteridade, pois fora através dele que surgiram Chico Buarque, Caetano, Gil, Nara Leão, João Bosco e os mais atuais, como Fernanda Takai, Ná Ozzetti e outros. Para todos os efeitos, Voz e Violão (2000 / 27,90) é um disco que merece atenção por ser um disco não apenas de coletâneas, mas por ser um álbum em que contempla a importância de um grande catalisador da música ainda vivo. O que não dá para entender é como as gerações após 1960 não conseguem compreender ou encaixar João Gilberto dentro de um contexto musical ou intelectual e nem ao menos dão o seu devido valor, mesmo os grandes críticos de música saberem disso. Esse descontentamento para com ele entristece aqueles que gostam de sua música e fazem com que a geração que nasceu com Voz e Violão o desconhece. Vale a pena ouvir suas músicas, ler livros que falem sobre o cantor e estarem por dentro de sua musicalidade irretocavelmente perfeita!

 

Voz e Violão (2000) / João Gilberto
Nota 10
Marcelo Teixeira

domingo, 16 de outubro de 2016

Cartola - O Musical: emoção à flor da pele

Cartola e Zica: muito samba
Chega a ser difícil segurar a emoção e conter as lágrimas quando vemos Cartola (1908 – 1980) e Dona Zica (1903 – 2003) bem de frente para nós, com suas roupas de outrora, seus passos envelhecidos, seus trejeitos amadurecidos e suas histórias de vida sendo muito bem representados pelos atores e cantores Flávio Bauraqui (perfeito, impecável, espetacular) e Virgínia Rosa (linda, esplêndida, maravilhosa). É impressionante a dramatização que o musical Cartola – O Mundo é um Moinho¹ transpassa para o público que lotou o Teatro Sérgio Cardoso neste sábado, 15 de outubro: com uma sincronização perfeita, elenco afiado e texto primoroso, todos ali presentes estavam ansiosos pela próxima cena, que era muito bem narrada pelo ator, cantor e escritor Hugo Germano (um banho de interpretação). O público estava fervilhando de emoção com cada música cantada, com cada movimento no palco, mas o momento mais esperado era o encontro entre Cartola e Dona Zica. E isso acontece, óbvio, mas para chegar nesse período sublime (e real) é preciso contar toda a trajetória do cantor e compositor carioca, que preferia o morro do que a comodidade de um lar digno de reis e marajás. O musical não deixa a desejar em nenhuma ocasião e a plateia fica tão extasiada, que as palmas eclodem o lotado teatro a todo instante. Que perfeito casal de atores! Flávio e Virgínia estão em um momento espetacular, tendo em vista que há tantos musicais importantes na cidade que já foram produzidos e que estão em fase de produção.  Com idealização do ator e produtor Jô Santana, dramaturgia de Artur Xexéo, direção e encenação de Roberto Lage, pesquisa detalhada da neta do homenageado, Nilcemar Nogueira (que também é diretora do Museu do Samba no Rio de Janeiro) e direção musical de Rildo Hora, Cartola - O Mundo é um Moinho conta a trajetória de um dos maiores nomes do samba, cujo fora o fundador de uma das escolas mais antigas e com toda a certeza a mais popular: Estação Primeira de Mangueira. Vá agora assistir ao musical, porque é uma obra-prima! Mas leve um lencinho, porque você vai se emocionar do começo ao fim. Chegando ao final do espetáculo é preciso parar para uma reflexão: na última cena, em que Cartola e Dona Zica fincam seus nomes no samba e com uma alegria insana, é possível dizer que eles estavam de fato presentes ali no teatro. Vírginia cresce virginosamente no final do primeiro ato para o início do segundo e consegue colocar nos eixos a vida de Cartola e a sua música perene.  É inconcebível reconhecer os atores como eles mesmos, pois a caracterização de todos é tão impactante, que chega a beirar a perfeição com tantos detalhes importantes. Vale destacar também a bela apresentação de Adriana Lessa (sem palavras, grande atriz, excepcional artista), Edu Silva e seu magistral Carlos CachaçaSilvetty Montilla (divina em um papel feito exclusivamente para ela), que nos deram momentos de risos deslubrantes. Destaque para Augusto Pompêo, que interpretou o pai de Cartola, nos dando um banho de intepretação, André Muato que ironizou Nelson Cavaquinho, Paulo Américo com seu vozeirão magnífico dando voz também ao Zé Ketti, Lu Fogaça e sua Nara Leão bem tímida e perfeitinha e Gabriel Vicente, que conseguiu captar detalhes homéricos de Francisco Alves. Palmas esfuziantes para os astros da noite: Flávio Bauraqui e Virgínia Rosa e seus talentos extraordinários! Viva Cartola!
¹A peça fica em cartaz até o dia 31/10/2016
Elenco: Flávio Bauraqui, Vírginia Rosa, Adriana Lessa, Hugo Germano, Augusto Pompêo, Ivan de Almeida, Silvetty Montilla, Edu Silva, Renata Vilela, Larissa Noel, Lu Fogaça, Andrea Cavalheiro, Grazzi Brasil, Flávia Saolli, Paulo Américo, Gabriel Vicente, Rodrigo Fernando e André Muato.
Serviços:
Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153 – Bela Vista
Temporada: de 11 de setembro a 31 de outubro
Horário: As sextas, 20h; sábados às 21h, domingos às 18h e segundas, às 20h.
Classificação etária: 12 anos
Duração: Duas horas e meia
Ingressos: De R$ 30,00 a R$ 120,00
Vendas: ingressorapido.com.br

 

Cartola – O Mundo é um Moinho
Nota 10
Por Marcelo Teixeira

sábado, 8 de outubro de 2016

Daniela Mercury: do axé à MPB


Daniela: rainha da axé
Sempre digo que a música baiana é dividida em blocos importantes: a primeira retrata a música de Dorival Caymm e Assis Valente, o segundo bloco é representado pela onda de baianidade intelectualizada formada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Baby do Brasil, Moraes Moreira e outros e o terceiro e mais importante bloco é representado apenas por uma única mulher, que revolucionou a música com três palavras determinantes: ginga, energia e determinação. A década de 1990 foi marcada pela geração de Daniela Mercury, que conseguiu uma legião de fãs por todo o Brasil com sua voz, sua dança, seu balé, sua sofisticação e seu axé. Estávamos saindo de uma onda roqueira, embalada por roqueiros e bandas com alguma simpatia cordial e estavámos enojados com o pagode brejeiro de grupos multifacetados que aspiravam a demagogia do riso forçado, que caminhava lado a lado com as duplas sertanejas que ascendiam lareiras fervilhantes, mas que nada se comparava aos mitos Chitãozinho e Xororó. As únicas cantoras que estavam no posto de donas da vez eram díspares em suas camadas musicais, sendo elas Marina Lima no rock e Daniela Mercury no chamado axé, pois Marisa Monte, que vinha de um disco maravilhoso de 1988 e Adriana Calcanhotto, que receberia as glórias em 1990, duelavam entre si pelo posto mais alto da música, mas o caminho de Daniela estava livre para mostrar o seu talento e, de quebra, aquilo que ninguém até então tinha ouvido cantar, falar e comentar. Ao longe e timidamente, cantoras do naipe de Cássia Eller, Zélia Duncan, Fernanda Abreu apareciam aqui ou ali em apresentações medianas. Mas 1991 foi um divisor de águas na carreira meteórica de Daniela Mercury, que nesta altura já tinha desistido de ser bailarina para se tornar a maior estrela da música nacional. Arrastou multidões com a música Swing da Cor (1991), que lhe rendeu centenas de shows e lhe valeu a fama de cantora das multidões. De fato, não havia uma cantora nacional com aquela popularidade enorme e Daniela tinha todos os atributos para ser a rainha do axé. Daniela Mercury era um fenômeno por onde passava e o axé tinha uma representante à altura. Com coreografias sensacionais, a cantora deixou seu nome registrado na música nacional como sendo a maior de todos os tempos. Depois de seu sucesso estrondante, artistas do naipe de Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque passaram a reverenciar sua voz, seu canto e seu estilo e a tornaram ainda mais em evidência: era o primeiro passo da cantora no mundo da MPB. A bem da verdade, Daniela já flertava com a música popular brasileira em algumas faixas de seus discos e esse sempre foi o desejo da baiana em ser um dia uma cantora distante do axé. Não que o estilo fosse negativo, mas Daniela sempre almejou ser uma nova Gal Costa, dando a chance de mostrar para outros públicos o quanto sua voz poderia ser privilegiada fora de um contexto elétrico. Com a chegada de Ivete Sangalo e, mais tarde, de Claudia Leite, Daniela deu vazão para o mundo da MPB e foi abandonando aos poucos a axé que um dia lhe consagrou. A mudança não surtiu tanto efeito assim para os fãs ardorosos da cantora, mas Daniela soube usar a inteligência e já havia sacado que se não mudasse de estilo o mais rápido possível, poderia cair no ostracismo. Não foi o que aconteceu: com ótimas releituras e com a voz ainda mais valorizada, Daniela conseguiu respeito e admiração de um público cada vez maior e que conseguia nutrir uma satisfação nada egocêntrica de sua parte. Daniela conseguiu mostrar sua voz para a cidade e realizou o sonho de ser uma menina baiana que um jeito que Deus dá.

 

Daniela Mercury: do axé à MPB
Por Marcelo Teixeira

sábado, 1 de outubro de 2016

A obra, o legado, a decadência e o mito Raul Seixas


Raul: mito do Rock
Raul Seixas morreu em agosto de 1989, derrubado pelos excessos. Deixou músicas que se tornaram hinos à rebeldia e à inconformidade com as coisas caretas do mundo e milhares de fãs desolados. Gente de todos os tipos choraram sua partida, desde ricos, pobres, caminhoneiros, roqueiros, urbanóides, sertanejos e estudantes. Raul não tinha rótulos, embora o rock estivesse em sua veia, mas o cantor passeio pelo baião, pelo samba e pelas baladas, compondo pérolas como Rock das Aranhas, Metamorfose Ambulante, Ouro de Tolo, Al Capone, entre tantas outras maravilhas. Mas o que esperar de um garoto problemático que cresce ouvindo Elvis Presley, Luiz Gonzaga, Chuck Berry e Jackson do Pandeiro? Raul transitava por todas as searas musicais, dizendo que não tinha um título que o rotulasse. Gostava de Genival Lacerda, mas também admirava Cauby Peixoto. Nascido na Bahia em 1945, Raul Seixas gostava mesmo era de intimidar as pessoas com suas tiradas e sacadas geniais. Várias de suas músicas foram censuradas pela Ditadura Militar, algumas foram engavetadas para uma gravação futura, outras tiveram que ter letras trocadas para não serem grampeadas pelo governo. Seu primeiro disco foi lançado em 1986, com o título de Rauzito e os Panteras, pela EMI-Odeon, não sendo um grande sucesso de público e muito menos de crítica. Com tanta desilusão musical, o cantor desfez a banda e voltou aos estudos, no curso de Filosofia. Não tardou muito e o cantor voltou à música, em 1972, inscrevendo-se para o VII Festival Internacional da Canção, classificando aqui duas músicas que se tornariam hinos consagrados: Let me Sing, Let me Sing e Eu Sou Eu, Nicuri é o Diabo. Através dessa classificação sensacional, o cantor e agora compositor reconhecido é contratado pela grande gravadora, a Phillips. Com sua ida à Phillips, Raul deparou-se com um escritor fracassado, metido a bruxo e com um lado místico efervescente: Paulo Coelho, que acreditava em discos voadores e extraterrestres. Através desse encontro, a vida de ambos, cantor e escritor, passa por uma transformação avassaladora: eis a parceria mais importante da música popular brasileira. Em 1973 lança sua mais pura perfeita tradução musical com Ouro de Tolo e a irônica e zombeteira Mosca na Sopa. Perseguido pelos militares em 1974, Raul exila-se nos Estados Unidos e mais uma vez é surpreendido pelo acontecimento histórico e inacreditável: o encontro com o ícone da música americana John Lennon. Volta ao Brasil no mesmo ano e compõe Sociedade Alternativa, O Trem das Sete e Gita, que se transformou em um disco antológico. Mas nem tudo eram flores na vida musical de Raul e, por esse motivo, em 1975 lança Novo Aeon, um disco fraco e que vendeu muito pouco, deixando a todos os empresários cabisbaixos, mas a qualidade desse disco é igual ou melhor que o de 1974. É nesse disco que se encontra um dos maiores selos românticos da obra do cantor: A Maçã. Já em 1977 lança O Dia em que a Terra Parou, compondo ao lado de Cláudio Roberto o hino hippie Maluco Beleza e que, por consequência disso, passa a ser o apelido de Raul. Esse disco passa a ser uma obra-prima também para o próprio Raul, pois Gilberto Gil dá uma canja no violão na música Que Luz é essa? Em 1978 lança Mata Virgem e retoma a parceria com o escritor Paulo Coelho, que estava meio estremecida desde 1975. Deprimido com público e crítica que rejeitaram seu disco Por quem os Sinos Dobram (1979), Raul exagera no consumo de bebidas e drogas, onde passa por várias internações e perde metade do pâncreas em uma cirurgia. Apesar dos problemas pessoais, o cantor volta com carga total e lança um mediano álbum, Abre-te Sésamo (1980), com relíquias como Anos 80 e Rock das Aranhas. Tendo uma boa repercussão por causa desse disco, Raul inicia uma pequena turnê pelo interior de São Paulo, preferindo apresentar-se em cidades pequenas, levando sua arte àqueles que não podiam ir aos seus shows de grandes proporções. Essa iniciativa não deu tão certo assim, embora a crítica o aplaudisse de pé: o cantor era visto bêbado nas padarias, sempre ao lado de um copo. Raras vezes o encontravam com um bloquinho e uma caneta rabiscando alguma música. Desse bloquinho ainda surtiram efeito de luz no fim do túnel e Raul põe no mercado, agora pelo selo Eldorado, o disco Raul Seixas, que conseguiu emplacar Carimbador Maluco e a música infantil Plunct-Plact-Zumm. Já em 1984, o cantor lança Metrô Linha 743, pela Som Livre, que teve uma música censurada: Mamãe Eu Não Queria (Servir o Exército).  Depois desse disco e sendo cada vez mais chamado de Maluco Beleza, Raul passaria por outras gravadoras e isso virou piada entre o meio musical, pois mostrava a já decadência do artista. Porém, em 1987, no disco Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Bém-Bum!, pela Copacabana, nasceu um de seus últimos hinos: a bela Cowboy Fora da Lei. O ano de 1988 não começou bom para o cantor, que vinha se tratando de vários problemas relacionados a álcool e lança um disco mais fraco que o de início de carreira, em 1968 e o de 1979. A Pedra do Gênesis (1988) foi muito mal recebida por todos e Raul decide-se se isolar por completo. Mas graças ao amigo e cantor Marcelo Nova (nesse tempo, Paulo Coelho já estava afastado de Raul), o convence a gravar novamente. O último disco da carreira de Raul chama-se A Panela do Diabo (1989), sendo um convite a sua saída derradeira aos 44 anos de idade e sendo um ícone da música nacional brasileira. O grande legado que Raul Seixas deixa para a música contemporânea é o seu mundo representado por músicas místicas envolvidas por ritmos até então nunca imaginadas juntas.  Raul não fora apenas um cantor que ministrou o baião, o samba e o rock no mesmo palco, mas sim, um grande cantor que estava desenhando o seu mundo imaginário através daquilo que achava justo e correto cantar.

 

O legado de Raul Seixas
Por Marcelo Teixeira