sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Chico Buarque e um clássico que não virou clássico e hoje encontra-se perdido


Chico 1967: obra-prima
Talvez o próprio Chico Buarque saiba que seu segundo disco de carreira, o antológico Chico Buarque de Hollanda – Volume 2 (1967 / RGE / 26,99) não chega a ser considerado um disco de primeira grandeza em sua carreira. Primeiro que o disco praticamente passa desapercebido do grande público hoje em dia e esse trabalho de relembrá-lo fica apenas restrito aos amantes e apaixonados pela obra do cantor e compositor carioca, que produziu o Volume 2 no rastro do enorme sucesso de seu disco de estreia, em especial por causa da faixa A Banda, pois a maioria de suas canções – tanto do primeiro quanto do segundo disco – não frequentaram as paradas de sucesso. O povo queria saber apenas de A Banda e da menininha timida que cantara ao seu lado nos festivais da TV Record – a musa da bossa nova, Nara Leão. Mas há de deixarmos claro e evidente aqui que mesmo que Volume 2 não tenha tido êxito na época de seu lançamento, algumas faixas viraram febre nacional e são hits que figuram na lista de preferidas de seu público, como Noite dos Mascarados, Morena dos Olhos d’Água, Quem Te Viu, Quem Te Vê. O novo álbum é cingido pelo mesmo lirismo nostálgico de seu antecessor e das 12 faixas, 8 tratam diretamente do amor. A música Com Açúcar, Com Afeto é um marco importantíssimo na carreira de Chico e foi essa a primeira composição em que ele se colocou na posição de uma mulher ao compor, sendo um recurso poético que, com o tempo, se tornaria uma de suas mais admiráveis marcas registradas. Chico atravessou boa parte de 1967 como que arrastado pelo sucesso contagiante de A Banda. A canção valera-lhe um programa na TV Record, o Pra Ver a Banda Passar, em que Chico apresentava em dupla com Nara Leão. Foi a partir deste ano que Chico diversificou sua criatividade. Travou um duplo contato inaugural com o cinema, atuando e compondo a trilha sonora do filme Garota de Ipanema, escreveu Roda-Viva, sua primeira peça teatral dita adulta e no ano seguinte, 1968, esse mesmo elenco de Roda-Viva seria agredido covardemente pelo Comando de Caça aos Comunistas. Mas o ano de 1967 era de fato um divisor de águas na vida de Chico: além de ter um programa na TV de maior sucesso com a musa da bossa nova, ver seu disco ser revenciado pelas pessoas (tanto o primeiro quanto o segundo) e ser um autor de peças teatrais consagrado, o seu plano pessoal o casamento com a iniciante atriz Marieta Severo lhe renderia um ano na ponte área Rio-São Paulo. Tudo isso era um turbilhão para o filho do historiador e antropólogo Sérgio Buarque de Hollanda, pois seu quarto filho de um total de sete, tinha apenas 22 anos quando viu seu mundo deslanchar.

O disco herda de seu antecessor, Chico 1, o mesmo lirismo nostálgico: suas 12 faixas enveredam por temas como os amores fugazes de Carnaval, dor de cotovelo e saudades, todos emoldurados em sambas, marchas e modinhas de melofia cativante e letras de elevada voltagem poética. O novo álbum, no entanto, passa à margem de certas questões que atormentavam o compositor naquele momento, porque quatro de suas canções haviam sido compostas nos dois anos anteriores e duas delas, Morena dos Olhos d’Água e Será que Cristina Volta?, chegaram a ser gravadas para seu primeiro LP, mas acabaram ficando de fora. O fato é que Chico, em 1967, brigava com muitas frentes para ter seus direitos preservados: lutava contra o governo autoritário, contra a sociedade de consumo americanizada, contra as indústrias culturais e, em especial, contra a imagem de bom moço que construía em torno de sua figura. Era essa a sua roda-viva. Até mesmo com o movimento tropicalista Chico se estranhou: ao ler o livro de Caetano Veloso, Verdade Tropical ( 1997 ), pude perceber o quanto Chico era um verdadeiro empecilho (palavras de Caetano Veloso) na vida dos tropicalistas. O tropicalismo, vertente baiana e iconoclasta da MPB de então, estava em alta em 1967. Alegria, Alegria, de Caetano, fora a quarta classificada no III Festival de MPB da Record, enquanto Domingo no Parque, de Gilberto Gil, ficou em segundo. Entre ambas, Chico e sua Roda-Viva. A campeã de fato foi Poneio, de Edu Lobo e Capinamm interpretada por Marília Medalha. Caetano e Gil, veladamente, haviam incorporado guitarras elétricas aos seus arranjos e aventuravam-se em novas experimentações poétias e de linguagem, coisa que Chico não aceitava. Para Caetano e Gil, Chico era um passadista. Para tanto, a ala mais militante da MPB cobrava de Chico um maior engajamento na luta contra a ditadura. Chico, por sua vez, odiava o rótulo de cantor de protesto.

Além de ter tudo ao mesmo tempo em sua vida e se ver ao lado de Nara Leão mas contrário à Caetano e Gil, ele viu que a MPB, na verdade, era apenas a face mais visível de um racha que começava a se desenhar entre os opositores à ditadura no Brasil. Não compensava ficar de birra em início de carreira e, portanto, tentou uma aproximação mais contundente dos tropicalistas baianos – que nessa altura já estavam próximos de Rita Lee e seus mutantes. Pesquisando por conta própria para elaborar e escrever este artigo, tive uma grata surpresa ao me deparar com um depoimento assombroso: até hoje muita gente acha que os atores de Roda-Viva foram espancados pelos gorilas do CCC por encenarem uma peça considerada subversiva. Não era nada disso ou daquilo: o espetáculo tinha muito pouco a ver com a política. A tal roda-viva tinha muito mais a ver com as engrenagens implacáveis do show bussiness que na época assustavam Chico e muitos achavam que a peça identificava-se com a ditadura.

Esquivando-se completamente de Chico e Gil, Chico voltaria sua atenção para Tom Jobim, Vinicius de Moraes e, curiosamente, Ronnie Von. Ronnie era de outro estilo musical que assolava o Brasil, a Jovem Guarda, mas a parceria entre os dois foi motivado pelo filme Garota de Ipanema. O fato é que Ronnie era um de estilo mais timido – e que conquistava muitos fãs – dentro da Jovem Guarda, mas o próprio Ronnie parecia que não se sentia muito a vontade dentro de seu próprio estilo. Em 1968 a Jovem Guarda se desfez – e dizem que a culpa fora dos Tropicalistas. Dito pelo não dito o fato é que Chico estava envolvido cada vez mais com sua música e sabia que ele e Caetano, díspares musicais, eram competidores hábeis.

Mesmo o disco de 1967 não sendo um grande sucesso de início e tendo tantos dissabores ao longo de sua caminhada naquele ano, as composições foram feitas com a primazia que Chico soube aplicar nas canções. Apesar de sua graça suave, Um Chorinho é até hoje uma canção pouco conhecida de sua obra por inteiro, assim como outras canções desse mesmo álbum entrariam para o rol de lugar secundário na discografia de Chico, como Lua Cheia, um samba cheio de desencanto composto em 1965 em parceria com Toquinho. As composições Ano Novo, com seus versos longos e curtíssima duração – pouco mais de 1 minuto – Logo Eu?, samba sobre um marido desprezado por sua mulher (cujo Mônica Salmaso o regravou em seu disco em homenagem a Chico em 2006) e Televisão, uma crítica aos novos hábitos consumistas da época, também foram recebidas com indiferença pelo público e até hoje praticamente não se falam ou as cantam. A bem humorada Será que Cristina Volta?, Fica e a terna Realejo conquistaram fãs silenciosos, mas nenhuma delas chegou a fazer grande sucesso.

A doce Morena dos Olhos d’Água e a melancólica Quem Te Viu, Quem Te Vê deixaram suas marcas, assim como a encantadora Noite dos Mascarados, cantada aqui com os Três Moraes, ainda é obrigatória em qualquer baile de carnaval que se preze.  Mas a obra-prima do disco, no entanto, é mesmo a quase mediunicamente feminina Com Açúcar, Com Afeto. A música, encomendada pela cantora Nara Leão, teve na contracapa do disco assinada pelo próprio autor que, por razões óbvias, ele não poderia cantá-la. Ou seja, ele não era uma mulher e a música tem um apelo feminino inacreditável. A voz límpida de Jane Morais suavizou bastante a interpretação. A canção fora composta em 1966 e naquele tempo era inconcebível um homem interpretar uma mulher. Mesmo sendo um Chico Buarque.

É bem provável que Chico Buarque de Hollanda Volume 2 jamais venha a figurar entre os álbuns fundamentais do compositor. De todo modo, é um disco importante em sua trajetória. Tecnicamente irreparável, poeticamente serena e inspiradora. Tudo em sua confeccão parece ter corrido sem transtornos. A única exceção fica por conta da capa, em que Chico, de pé, segura um violão, tendo ao fundo a paisagem deslumbrante da lagoa carioca Rodrigo de Freitas. Para obter essa imagem, o fotógrafo David Zingg, americano radicado no Brasil, deitou-se no asfalto da avenida que circunda a lagoa e, por pouco, não foi atropelado por um caminhão.

 

Fontes:

VELOSO, Caetano; Verdade Tropical, 1º ed, São Paulo, Cia de Bolso, 2008, 513 pgs.

HOMEM, Wagner; Chico Buarque – História de Canções, 1 ed, São Paulo, Leya Brasil, 2009, 428 pgs.

 

Chico Buarque de Hollanda – Vol. 2 (1967) / Chico Buarque
Nota 10
Por Marcelo Teixeira

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