Chico
Buarque de Hollanda ocupa, pela qualidade estética de suas canções, um lócus
privilegiado em nossa música popular. Ao que nos parece, todo apreciador da
chamada MPB aceita esta assertiva sem contestar. Millôr Fernandes, recém-falecido,
chegara a afirmar, com certa razão, que Chico Buarque é a única unanimidade
nacional. E de fato muitas de suas canções se tornaram verdadeiros hinos,
sobretudo aquelas (a exemplo de Apesar de
você, de 1970) compostas sob a admoestação severa dos militares, o que fez
com que o cancionista ganhasse a pecha de músico de protesto. As canções
buarqueanas, se observadas com cuidado, são paradoxais: ao mesmo tempo em que
se mostram simples e comunicativas, elas nos revelam uma complexa e imbricada
rede de sons e de efeitos sutis e um fino trato com a articulação prosódica.
Ademais, em seu conteúdo nos apresenta uma visão de mundo dialética e, não
obstante, reveladora da dinâmica política/ cultural do nosso país.
Chico Buarque: o maior artista brasileiro |
Conheci a obra de Chico
Buarque através da cantora Clara Nunes, de quem minha mãe sempre foi fã e tinha
todos os seus vinis e, automaticamente, transferiu para mim a vocação de
tutelar desses vinis, que se transformaram em fitas cassetes e hoje em CDs. Em
muitas faixas de diversos discos de Clara, tinha o nome de Chico Buarque e eu
não era um tipo de fedelho que somente ouvia a canção: eu apreciava. Apreciar
no sentido figurado, porque queria saber quem compusera tal música, o porquê,
os detalhes, os fragmentos, os músicos envolvidos na canção e por aí vai. Chico
Buarque marcou presença, anos depois, nas músicas de Elis Regina (cujo a
primeira música que ouvi da grande cantora foi O Bêbado e a Equilibrista) e a
partir desse universo de grandes cantoras, pude ter a certeza da qualidade
musical a qual Chico Buarque exercia sobre o Brasil e no Brasil.
O universo de sons e signos
das canções de Chico se configura a partir do embate de duas forças (aparentemente):
homem e mulher. É deste equilíbrio tenso que brota a naturalidade da dicção
buarqueana. Dessa maneira, trata-se de uma difícil tarefa, embora possível,
avaliarmos esse dizer buarqueano por apenas um viés. Não é exatamente isto o
que tem sido feito pela crítica? Os críticos costumam seccionar a riqueza das
canções desse compositor e, assim, estudar como instâncias separadas o Chico
político, o Chico revelador do feminino, O Chico artesão da palavra, o Chico
malandro, dentre outras máscaras do seu lirismo dramático. Mas é que, no fundo,
o que um grande cancionista nos faz experimentar é exatamente isso: uma cadeia
de signos verbais e musicais que se entrelaçam, se auto equilibram, e nos
permite perceber o mundo por diferentes vieses. Daí as variadas interpretações
realizadas sobre obra do compositor carioca.
Os arranjos musicais da obra
de Chico - muitos deles escritos por músicos da envergadura de Rogério Duprat e
Luiz Cláudio Ramos – completam a poeticidade sonora do seu cancioneiro. Na referida
A banda, por exemplo, o arranjo é
composto de instrumentos típico das bandinhas de música (clarineta, trombone,
caixa, dentre outros). Estes instrumentos vão entrando gradativamente na música
e se agrupam como se fossem as pessoas aglomeradas para ouvir a marchinha
singela. É como a própria letra comenta:
E a meninada toda se assanhou/ Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor.
O arranjo foi construído sob esta perspectiva: uma leve puxada de violão
converte-se na sonoridade de uma banda inteira, que brilha e nos transmite uma
sensação de alegria passageira. Este sentido é expresso pela letra: E para o meu desencanto /O que era doce
acabou/Tudo voltou pro lugar/Depois que a banda passou. É recorrente esse
discurso, tanto da música quanto do texto, nas primeiras composições de Chico:
a música (a arte) é a maneira de dissipar o mal estar da nossa sociedade e
provocar em nós um momento, ainda que fortuito, de catarse. Fazer-nos viver num
tempo quase mítico. Fazer com que rompamos o silêncio através da música.
Retrato
em branco e preto (1968), em parceria com Tom Jobim, pode
seguramente ser citada como uma das canções mais bem realizadas, no que se
refere ao encontro da palavra com a música, ou, mais precisamente, à
articulação das hierarquizações prosódicas com as melódicas. Nesta composição
não iremos mais sentir a ingenuidade poética de A banda, mas a consciência de um amor trágico, que volta sempre a
maltratar. Esse espírito de desilusão amorosa está impresso nas estruturas da
melodia de Tom Jobim, que compôs primeiramente a música. Trata-se de uma
melodia cromática com repetições incisivas e harmonia dissonante. Esse
vai-e-vem da melodia (que nos remete aos passos nervosos de uma pessoa) nos dá
a sensação de que estamos rodando insistentemente sem chegar a nenhum lugar.
Efeito que também se observa no plano da letra: Já conheço os passos dessa estrada/ Sei que não vai dar em nada/ Seus
segredos sei de cor. A letra dessa canção como um todo é uma tentativa de
expressar sonoramente a sensação de impedimento, desilusão e repetição: Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato
em branco em preto/ A maltratar meu coração. Na interpretação convincente
de Elis Regina, presente no disco Elis e Tom, este efeito de sentido
se torna mais claro, já que a cantora acentua e articula “sílaba por sílaba” os
finais de cada frase musical.
Diante dessas conjecturas,
podemos colocar que na obra de Chico as tensões do mundo amoroso, político,
cultural se revelam na forma do conteúdo da letra e na construção melódica da
música. Uma dialética do social com o formal. Nesse sentido, podemos afirmar
que Chico não é apreciador de trocadilhos e truques poético-musicais gratuitos
e artificiosos - comuns na canção popular brasileira da atualidade. É possível
ainda inferir que Chico Buarque aprendeu a retirar os excessos e depurar a
forma de sua música com a Bossa-nova e com a poesia moderna brasileira. Para
tanto, foram basilares: Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e o dueto
bossa-nova Tom Jobim e João Gilberto. Isso se observa em suas melodias com
poucas notas (porém muito expressivas), na voz cantada sem dramatismos e exageros
(Bossa-nova) e na capacidade de síntese poética de suas letras. A canção Iracema voou (1998) é um exemplo dessa
influência: Iracema voou para América/
Leva roupa de lã e anda lépida/ Vê um filme de quando em vez / Não domina o idioma
Inglês / Lava chão numa casa de chá.
Chico Buarque, consciente do
seu tempo e do seu país, encontra a dicção precisa para falar dos nossos
problemas sociais, das nossas desilusões amorosas, das nossas alegrias, da
beleza do nosso futebol, num contínuo andar pra frente arrastando a tradição,
como bem nos dissera Caetano Veloso. E de fato Chico impulsiona nossa tradição
pra frente, porque nele coabitam as múltiplas vozes das matrizes composicionais
da nossa MPB (em especial Noel Rosa, Tom Jobim e João Gilberto). Seu falar é,
ao mesmo tempo, tradição e modernização.
Expressividade sonora e equilíbrio
prosódico são termos que, se não definem, pelo menos caracterizam bem a escrita
musical buarqueana. Os conteúdos desta escrita são expressos estruturalmente
pelo embate entre som e sentido, entre prosódia e melodia. E, é importante que
se diga, de maneira minuciosamente balanceada e calculada para que letra e
melodia formem uma bela música. Afinal, como nos ensinara Luiz Tatit na sua
forma mais sublime de se fazer músicas ministrando letras e formas linguísticas,
esse é o ofício (nada fácil) do cancionista: descobrir compatibilidades entre
esses dois sistemas de asterismos que é a melodia (música) e a letra
(literatura).
Quem
é Chico Buarque?
Marcelo
Teixeira
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