terça-feira, 30 de junho de 2015

Cristiano Araújo e a carnavalização de sua morte


Cristiano: sertão, carnaval e morte
Quando noticiaram a morte de Cristiano Araújo, logo me manifestei nas redes sociais, dizendo que não conhecia o cantor, mas que a nossa música ficaria ainda mais rica com o seu silêncio. Disse isso sem arrependimentos ou traumas por não conhecer a fundo a carreira do cantor sertanejo, mas sabendo que suas músicas eram de um recorro comercial apelativo. Logo fui prestar um grande serviço à minha memória: ouvir o som de Cristiano Araújo. Tudo bem que o cantor não era lá grandes coisas, suas músicas não são de todo ruim, não há duplo sentido como ouvimos em outros estilos mais enfadonhos e até mesmo dentro do estilo sertanejo, mas assistindo aos vídeos de Cristiano, pude notar que há, sim, conotação sexual em suas danças e há, sim, um apelo comercial generalizado por grandes empresas. Disse no artigo anterior que Cristiano Araújo fora um cantor que trilhou o próprio caminho para chegar, por ele próprio, ao estrelato que tanto queria, assim como disse também que ele era um homem sensato, pensativo e de carisma pessoal incrível. Não retiro uma virgula do que disse no artigo anterior, mas ressalvo aqui neste novo post que Cristiano não era bem um desses cantores populares que nasceram do dia para a noite num estalar de dedos ou num piscar de olhos. O cantor teve o aparato de outras estrelas e sub estrelas do mundo dos negócios, do dinheiro fácil e da fama repentina. E acabou pagando da pior forma por todo este aparato: com sua própria vida. Perguntaram-me onde estava a minha diversidade e onde estava a filosofia da cultura sertaneja enraizada dentro de mim e eis que respondo: a diversidade está espalhada em todos os cantos, seja na música, na pintura ou na novela, mas cada um sabe interpretar e aceitar a sua diversidade da forma que bem entender. Aqui não utilizo a ferramenta da diversidade, mas sim a pluralidade diversificada que todos nós carregamos quando depreciamos algo. O multiculturalismo existente em todos os povos se faz presente quando possamos demonstrar algo diferente da nossa cultura popular e, neste sentido, Cristiano Araújo pôde mostrar perfeitamente sua música regional de forma sensata, original e atemporal para o Brasil inteiro, mesmo que às custas da mídia regedora deste país. A diferença entre multiculturalismo, diversidade e pluralidade diversificada é que a minha opinião se diz onipresente a opinião do outro e que nem sempre somos obrigados a aceitar o que o outro diz, sabendo que talvez esse outro tenha a mesma opinião formada que temos. Mais tomado pela emoção da comoção sofrida pelo público presente entre notícia, velório, sepultamento e o dia após a morte, escrevi um artigo brando na semana passada, em que tentei comparar o distanciamento profissional entre Cristiano, Luan Santanna, Gustavo Lima e, para ficar apenas no sertanejo universitário de hoje em dia, não me atrevi a buscar nomes que lutaram verdadeiramente para que a música sertaneja fosse, definitivamente, colocada em seu devido lugar. A posição em que Cristiano Araújo estava ainda poderia ser a de melhor posição, pois a mídia o renegava, mas o público lhe era fiel. Luan e Gustavo tinham a mídia ao seu bel prazer e mesmo lançando discos com classificação baixa, lucram e levam porcariada musical para dentro de nossos tímpanos. Nessa categoria, Cristiano Araújo venceu a batalha: através do entrave entre divulgação de show / mídia global / casa lotada, o cantor vencia em todos os aspectos. A música caipira, regional, sertaneja sempre foi reduto de anedotas e preconceito, mas vale lembrar que todos os ritmos brasileiros, desde o samba de Clara Nunes, Noel Rosa, Martinho da Vila, passando pelo pagode de Katinguêle, Exaltasamba, Pixote e até a música romântica produzida por Fábio Junior, Mauricio Mattar e outros são alvos de piadas, mas os sertanejos ficam mais ofensivos quando os atacam. Por que? Porque o psicológico do sertanejo é mais lento. Explico: todos os sertanejos dizem que nasceram na roça, de uma origem familiar rude e pobre, mas que conseguem o estrelato através da música, que acaba sendo mais que a fé em Deus que todos eles têm. Atribuem o sucesso ao pai, que lutou tanto para que o filho (ou os filhos) chegassem à roda da fortuna musical, se orgulham de não terem entrado para a faculdade e se orgulham de elevar o nome de sua terra natal aos jornais. O primeiro ato de preconceito parte diretamente deles, dos sertanejos e quando acontece alguma fatalidade como a que vitimou Cristiano Araújo e muitos tentam explicar os motivos pela sua morte repentina, eles, os sertanejos, se veem atirados num lamaçal de esgoto. Esse ato pejorativo de preconceito se chama pluralidade cultural e parte não da mídia escolarizada, mas sim de um grupo que já nasceu dentro do seio sertanista. A diversidade está dentro de cada um de nós, enraizada em cada pessoa que cultiva a sua própria cultura. Mas o que se viu nesta semana foi uma festa: nunca a morte de um cantor meramente desconhecido do grande público se fez presente nas redes sociais, no mundo da fofoca, do showbiz, da música. Cristiano Araújo levou para seu enterro uma bagatela de gente anônima, choradeiras de parto prematuro, que somados chegou a quase 61 mil estridentes. Suas músicas se tornaram hinos (e isso está acontecendo ainda mais agora que ele está há sete palmos de terra!). Mulheres em sua maioria se agarrando à outras desconhecidas pela mesma causa: pela carnavalização da morte de um cantor desconhecido do Brasil. Há de nascer vários cristianos agora, não no mundo da música, mas em forma de homenagem. Assim como já mataram verbalmente o jogador português Cristiano Ronaldo (para demonstrar que realmente o cantor era um mero desconhecido), tive que dar muita risada quando foi comparada a morte do sertanejo universitário ao dos Mamonas Assassinas: irrisório, hilário e, para não dizer canhestro. Mamonas Assassinas já tinham fama e um certo prestígio quando morreram naquele desastre aéreo, mas dizer que Cristiano Araújo tem o mesmo patamar de morte por levar multidões ao choro desengonçado, é dizer que somos analfabetos natos. O que me faz falta é a cultura que vem de dentro de casa, dos pais, dos avós, do irmão mais velho para demonstrar que mesmo havendo uma música descartável, temos também a música que nos faz pensar, que temos Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Elis Regina, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Chitãozinho e Xororó, Pena Branca e Xavantinho, Elomar (este sim, um verdadeiro regional brasileiro) e tantos outros artistas verdadeiramente capacitados para nos mostrar que a música é a arte maior de pensamento único. A carnavalização na qual fomos obrigados a degustar, digerir e participar dos ensaios foi tão grotesca, tão irracional, tão desumana, que chegou ao ponto de todos os meios de comunicação ficarem maciçamente abordando o assunto, fazendo deste cerimonial um ato de bravura, de enriquecimento humano, de emoção sentimental para com quem nem chegamos a nos familiarizar. O  que se viu foi uma aberração completa, um sepultamento musical privilegiado para muitos que mesmo não querendo ver, estavam curiosos para ver o apito final e dizer acabou! Não me interpretem mal, pois o que estou falando é a mais pura verdade: Cristiano Araújo levou mais gente para o seu enterro que para seu próprio show. Fomos obrigados a participar desta coletividade fazendo parte das estatísticas de que o cantor realmente atraía multidões. Muitos que lá estavam no dia final não se conheciam, óbvio, assim como muitos que acompanhavam o sepultamento estavam ali mais pela curiosidade que pela emoção. Afinal: mesmo Cristiano Araújo lotando casas noturnas como fazia, seu público não era tão gigantesco assim, ou seja, faltava muito para realmente ser um Cristiano Araújo de verdade. Precisou o cantor morrer para provar que tinha mais público fora que dentro das casas noturnas.

 

 

Cristiano Araújo e a carnavalização de sua morte
Marcelo Teixeira

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A morte prematura de Cristiano Araújo

Cristiano: Morte prematura
O que temos pra hoje é saudade”. Um dos últimos sucessos de Cristiano Araújo foi praticamente um prelúdio de sua morte prematura, um recado, uma sina, uma predestinação daquilo que poderia vir a ser sua saída de cena. Cristiano Araújo não era um cantor de grande mídia, não aparecia com frequência em programas de televisão e era muito tímido, reservado e ao mesmo tempo humilde. Seus shows eram todos lotados, repletos de homens e mulheres que curtiam seu som, que adoravam suas danças e que estavam atentos aos movimentos do cantor. A motivação maior de Cristiano Araújo era o poder imediato desse público para com sua voz, sua música regional, seu jeito de mostrar seu carinho para com elas. Mas Cristiano não precisava da mídia televisiva nem dos jornais impressos para mostrar o seu talento: ele tinha a magnitude avassaladora de um grande músico dentro da música sertaneja, caipira e de raiz. Por mais que suas canções não demonstrassem ou denotassem atos ilícitos ou pejorativos, o cantor conseguia driblar as letras sensuais e mostrar que sabia compor, cantar e encantar seus fãs. Confesso que não tinha muita admiração pelo cantor e que muitas vezes ouvia suas músicas pensando que fosse outro cantor qualquer do segmento. Sua imagem e semelhança não ficaram gravadas em meu subconsciente, assim como suas músicas não me retratam em nada absolutamente. O que mais choca o país e a todos nesse momento é a forma repentina como o cantor saiu de cena dos holofotes: a morte, para todos, é inevitável, mas uma morte trágica, fechada e dolorida, ficará em nossa memória para todo o sempre. A carreira meteórica de Cristiano foi pautada em sucessos que hoje, depois de garimpar sobre sua vida, pude ter conhecimento maior. Foram quase cinco anos de sucesso embutidos dentro de um armário, ou seja, dentro de um cubículo que apenas os fãs tinham direito. Esnobado pela grande mídia, o cantor trazia consigo o aplauso dos fãs, que o veneravam em todos os caminhos. Partindo de um início sensato, Cristiano Araújo tinha carisma pessoal intransferível: ele era capaz de agradar desde a criança até o senhor, mas sua popularidade maior com a música trouxe uma notoriedade exemplar. Na vida pessoal era tido como brincalhão, alegre e amoroso com os filhos, enquanto no palco transmitia a mesma alegria para seus fãs, mesmo sendo um tímido conservador. Mas sua morte trouxe uma lacuna para a música sertaneja, que tinha em Cristiano Araújo um adendo maior para demonstrar que nenhum cantor precisa de grandes holofotes. Sua música, de fato, era regional, tida por muitos como não universitária, o que deixava alguns meios de comunicação irritados. O que diferencia Cristiano Araújo de outros bambas da música regional como Luan Santanna e Gustavo Lima é sua responsabilidade musical e atemporal: Cristiano era um cantor maduro, tinha discernimento entre o certo e o errado, sabia falar no momento certo e se expor no momento certo, enquanto seus contemporâneos são mais atirados, querendo a todo custo aparecer, emplacar sucessos enfadonhos e sendo, a cada momento, irritantes com seus risinhos de cantores bem-sucedidos. Cristiano Araújo foi o oposto disso tudo: ele soube, atenciosamente, ser ele mesmo, sem estar preocupado com opiniões alheias e irrisórias. Cristiano foi o próprio mentor de sua carreira musical e pessoal, não dando margens para que o outro desse opinião diversificada sobre sua música. Esteve a todo momento cuidando de sua carreira pessoal e profissional e conseguiu ficar escondido em seu canto, longe da mídia que ao mesmo tempo eleva e depois derruba e conseguiu fazer o que muitos gostariam de fazer: lotar casas de show sem grandes estardalhaços. Sua morte precisou acontecer para que todos tomassem conhecimento de sua arte e isso já acontecera com outros grandes cantores nacionais, como Clara Nunes, Jessé, Gonzaguinha. Com sua morte, os quatro cantos do país estão chorando a perda de seu garoto prodígio e de sua música tenra, mas com certeza seus fãs nunca o esquecerão. Agora, o que essas fãs tem é saudade, como imortalizou Cristiano Araújo em uma de suas últimas músicas.

A morte de Cristiano Araújo
Marcelo Teixeira

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A importância do álbum de Bebel Gilberto (1986)


Bebel: disco rejeitado por ela?
A primeira cantora a gravar Eu preciso dizer que te amo foi justamente uma das compositoras deste clássico, Bebel Gilberto, filha de Miúcha e João Gilberto. A canção, composta a seis mãos, foi gravada originalmente em 1986 para o disco inicial e experimental da cantora, intitulado apenas de Bebel Gilberto, contendo apenas 5 músicas. Não foi um grande lançamento na época e hoje em dia a própria cantora recusa saber a origem deste disco, mas o fato é que o álbum tem uma importância significativa dentro da história da MPB, na magnitude meteórica de Cazuza e, mais do que nunca, na vida da própria Bebel. Pra início de conversa, esse disco foi produzido pensando na amizade que Bebel tinha com Cazuza (seu grande amigo) e Dé Palmeira, seu então namorado. A época de seu lançamento, o disco não surtira efeito esperado e Cazuza não era tão famoso assim a ponto de ser reconhecido por suas letras e por esse motivo, passara desapercebido pelo grande público e crítica. Inclusive nos dias de hoje, o disco, raro no mercado, desperta a curiosidade apenas de fãs da cantora e por parte dos amantes da música nacional. Mas o que era para ser um motivo de orgulho, passa a ser um motivo de depreciação da cantora, que não gosta muito de seu início de carreira. Convenhamos que a voz de Bebel não era lá grande coisa e nem estava em evidência quando surgiu como interprete, tendo como concorrentes as principais vozes do escalão de Marina Lima, Zizi Possi, Angela Ro Ro, mas sua importância para os anos seguintes seria de grande valia. Seja como for, Bebel Gilberto (1986 / WEA / 35,00) é um disco que merece destaque e atenção pelo conjunto da obra. Produzido por Chico Neves, o disco fora de fato gravado em 1986 e teve como destaque duas grandes canções já imortalizadas nas vozes de Bebel, Cazuza, Marina Lima, Adriana Calcanhotto, Zizi Possi, Ney Matogrosso, entre outros: Mais Feliz e Eu preciso dizer que te amo. Dois clássicos de extrema importância para ambos os cantores que fizeram destas canções verdadeiros hinos. Mas o que chama mais a atenção é a negação deste disco pela própria cantora nos dias de hoje. Bebel quase não canta essas músicas (Eu preciso dizer que te amo ela ainda cantarola), mas os outros nem sinal de que lhe pertencem. Algumas mídias colocaram em pauta que Tanto Tempo (2000) seria o primeiro trabalho de Bebel, o que não é verdade e mesmo assim, a cantora não chegou a desmentir esses veículos. Houve um boato até de que a cantora teria pedido para a gravadora Warner Arquivos retirar do mercado, sob escolta judicial, do CD do mercado recentemente, o que não ficou totalmente esclarecido, mas o fato é que o disco não se encontra tão facilmente. Embora Bebel tenha sido a grande detentora da música e ser a responsável pela gravação original, quem ganhou os holofotes pela primazia da canção foi Marina Lima, que a regravou, em 1987, para seu disco Virgem, tornando-se um dos grandes hits daquele ano e sendo campeã de vendas. A voz de Bebel era a de uma garota fanha, mais preocupada com os agitos dos amigos do que com a responsabilidade profissional em ser uma cantora. Anos depois houve um giro gigantesco em sua vida e Bebel pôde, enfim, mostrar sua versatilidade com discos antológicos e merecedores de aplausos tanto no Brasil como nos Estados Unidos.

Bebel Gilberto (1986) / Bebel Gilberto
Nota 10
Marcelo Teixeira

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O brilhantismo de Elis 1973


Elis 73: simples e luxo ao mesmo tempo
Entre o grande sucesso de O Bem Amado, primeira novela à cores no Brasil, escrita por Dias Gomes, o lançamento de três álbuns importantes dentro da música popular brasileira acontecia à revelia de um grande espetáculo de público e crítica: Nervos de Aço, do sambista Paulinho da Viola, em que o cantor aparece chorando na capa e Secos & Molhados, cujos os integrantes estão apenas com as cabeças em forma de guilhotina, com Ney Matogrosso como líder maior do grupo. O Brasil estava sob a ditadura austera de Médice e tudo o que era falado e/ou cantado passava por uma rigorosa tortura física e mental. Por outro lado, a Jovem Guarda já não fazia sucesso e o estilo de roupa e os cabelos tanto de homens quanto o de mulheres, faziam enorme sucesso entre as classes sociais mais abrangentes e que recaía sobre o proletariado da vez (os grandes consumidores de toda uma geração). A efervescência musical vinha por conta de grandes acontecimentos no país e mesmo sob forte domínio político, o mundo da música ganhava peso e força à medida em que os meses se passavam. Raul Seixas, Tom Jobim e Milton Nascimento lançaram músicas (e não discos) sensacionais e conseguiram ganhar a credibilidade de líderes do partido e até mesmo de políticos que se renderam às suas músicas. Mas o grande lançamento ficou por conta de uma cantora baixinha, ranzinza, cabelos masculinizados para uma época em que a feminilidade tomava conta: Elis Regina e seu verdadeiro disco de categoria. Elis 1973 (19,99 / Philips / 1973) vai do simples ao luxo com uma assombrosa tempestade lírica de uma das maiores cantoras do país. Partindo de uma naturalidade mórbida, Elis soube ousar em todas as faixas, recriando sua própria voz, se redescobrindo a cada canção, não poupando mágicas em suas cordas vocais e se superando em um país até então dominado por cantores. Simples ao seu jeito e luxuoso por completo, Elis 1973 é um dos melhores (senão o melhor!) disco de carreira da cantora. Com composições de Gilberto Gil, João Bosco e Pedro Caetano, a cantora pôde interpretar com maestria cada faixa, degustando o seu próprio domínio de estúdio e se mostrando versátil para a música num todo, não escondendo a enorme satisfação em fazer aquele trabalho. Elis não saberia naquele momento e talvez nunca soube em vida, mas seu disco era totalmente diferente daquilo que vinha fazendo até então: sem ter uma música sequer de Milton Nascimento, Tom Jobim, Chico Buarque ou Ivan Lins, a cantora optou por reunir um seleto time de compositores para dar corpo e alma ao seu disco daquele emblemático ano. Justamente os cantores e compositores que a ditadura tanto odiava e que eram perseguidos. Resultado: Elis 1973 se tornou referência e Elis conseguiu sair da aba do impulso musical que a dominava até então. Vale lembrar que um ano antes, 1972, Elis também veio com um disco sensacional, mas dominado de clichês e falta de senso comum: o disco, mesmo sendo bom, também conseguiu ganhar notoriedade por ser exemplar e moderninho para a época. Mas é em 1973 que o grande ano de Elis acontecia: sem ser demagoga, lançou um disco em que não era política nem assombrava as pessoas (exceto pela música Agnus Sei (João Bosco / Aldir Blanc), em que criticava a Igreja; pelo contrário, fazia com que o público se aproximasse dela com mais simpatia e menos arrogância e talvez isso explique o enorme sucesso de seu disco e show Falso Brilhante, em 1976, com composição do também João Bosco. Além de ser um dos discos indispensáveis em sua discografia (tanto para Elis quanto para o público), o disco trouxe particularidades que fizeram com que o mundo da música em seus bastidores entrasse em devaneio. A começar pela música Ladeira da Preguiça, que Elis pedira a Gilberto Gil por telefone e, enquanto conversavam, o compositor baiano escrevia a letra sem ser incomodado por uma Elis estridente do outro lado da linha. Recentemente, em seu disco Gilbertos Sambas (2014), Gil disse que era impossível não se lembrar de Elis e de sua história quando canta essa música. Em segundo lugar, teve a pequena rusga entre Elis e Beth Carvalho: a sambista recusou a música Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, pois seu disco já estava completo (fechado para ser reproduzido). Então, Nelson ligou para Elis e a cantou via telefone e a cantora gaúcha se derreteu e aceitou gravá-la. O enorme sucesso da canção fez com que Beth se sentisse traída, pois o grande trabalho de Elis 1973 seria É Com Esse que eu Vou, um samba-canção de Pedro Caetano, que ganhou dimensão rapidamente. Alguns anos depois, Elis dissera em entrevistas sobre esse episódio e Beth Carvalho (que tivera crises existenciais pelo sucesso de Clara Nunes) praticamente não fala no assunto. Seja como for, Elis 1973 é um dos melhores discos de Elis e não pode ficar de fora de qualquer lista que aborde os melhores discos nacionais de todos os tempos. Elis se mostrou como uma das melhores cantoras daquele ano (em 1974 veio com o excelente Tom & Elis, referência até hoje) e sua música, sua voz, seu carisma e sua popularidade eram gritantes mesmo em um período obscuro da nossa própria história.

 

Elis 1973 (1973) / Elis Regina
Nota 10
Marcelo Teixeira

sexta-feira, 5 de junho de 2015

O Brasil por Clara Nunes em Nação (1982)


A Nação de Clara Nunes
Um ano antes de sua morte, a vida de Clara Nunes estava completa: ela se tornara, definitivamente, uma das maiores cantoras do Brasil, era popular, bonita, simpática e tinha todos os amigos possíveis e imagináveis ao seu redor. Tirando o fato de não conseguir ser mãe, a cantora estava trilhando um dos caminhos mais bem-sucedidos na história da arte de cantar feminino, que todos se rendiam a ela. Antes dela, apenas Carmen Miranda conseguira tal efeito, em que conseguia trilhar por diversos meios, sempre antenada com o novo e surpreendendo a todos. Elis Regina tinha falecido no fatídico Janeiro de 1982, assim como Vinicius de Moraes e Paulo Sérgio tinham nos deixado em 1980, empobrecendo a música naquela época. Nessa mesma década, os anos 1980 se tornariam o ano do rock nacional, tendo como heróis Cazuza, RPM, Legião Urbana, Capital Inicial, entre outros. Mas no início dos anos 1980 quem reinava absoluta era Clara Nunes, que vinha com discos cada vez mais sensacionais, melhores e mais autênticos. Prova disso foi o estrondoso sucesso Nação (1982 / Odeon / 19,99) derradeiro disco da cantora, que marcava o começo da parceria de João Bosco com Clara. Única música do cantor e compositor mineiro gravada por Clara, Nação representa aquilo que O Canto das Três Raças, Jogo de Angola e Guerreira queriam dizer em outros tempos: a luta do brasileiro pela sua terra, pela sua nação. Clara foi a única cantora brasileira que cantou verdadeiramente o Brasil em todas as suas formalidades e suas variedades. Depois dela, nenhuma outra conseguiu ocupar seu lugar de prestígio e respeito dentro deste segmento, porque ninguém vai ser igual à Clara. Nação marca o fim da carreira promissora de Clara e aqui neste disco podemos sentir a voz embargada em algumas canções: mesmo cantando alegremente, podemos notar que a voz de Clara está mais pesada, mais fechada, mas sem perder o brilhantismo de sua emoção. Sem perder suas origens, a cantora seguiu fielmente até o fim com sua religiosidade e sua fé inabalável. Cantou e encantou as pessoas conforme foi passando os anos. Sentiu emoções de público e crítica. Tornou-se a mulher mais vendável do Brasil. E a mais criticada pela igreja também. Suas músicas em Nação denotam que sua fé era muito maior que qualquer crítica ácida que vinha debaixo, da evangelização caricatural ou da igreja com seus padres sem mentalidades. João Bosco fora um dos grandes responsáveis pelo sucesso do disco, compondo uma das músicas mais emblemáticas retratando o povo brasileiro e o próprio Brasil. Quanto à Clara: nos deixou com a responsabilidade de mantermos vivos sua herança musical tentando resguardar o Brasil do Brazil.

 

Nação (1982) / Clara Nunes

Nota 10

Marcelo Teixeira