Cristiano: sertão, carnaval e morte |
Quando noticiaram a morte de Cristiano
Araújo, logo me manifestei nas redes sociais, dizendo que não conhecia o
cantor, mas que a nossa música ficaria ainda mais rica com o seu silêncio.
Disse isso sem arrependimentos ou traumas por não conhecer a fundo a carreira
do cantor sertanejo, mas sabendo que suas músicas eram de um recorro comercial
apelativo. Logo fui prestar um grande serviço à minha memória: ouvir o som de
Cristiano Araújo. Tudo bem que o cantor não era lá grandes coisas, suas músicas
não são de todo ruim, não há duplo sentido como ouvimos em outros estilos mais
enfadonhos e até mesmo dentro do estilo sertanejo, mas assistindo aos vídeos de
Cristiano, pude notar que há, sim, conotação sexual em suas danças e há, sim,
um apelo comercial generalizado por grandes empresas. Disse no artigo anterior
que Cristiano Araújo fora um cantor que trilhou o próprio caminho para chegar,
por ele próprio, ao estrelato que tanto queria, assim como disse também que ele
era um homem sensato, pensativo e de carisma pessoal incrível. Não retiro uma
virgula do que disse no artigo anterior, mas ressalvo aqui neste novo post que
Cristiano não era bem um desses cantores populares que nasceram do dia para a
noite num estalar de dedos ou num piscar de olhos. O cantor teve o aparato de
outras estrelas e sub estrelas do mundo dos negócios, do dinheiro fácil e da
fama repentina. E acabou pagando da pior forma por todo este aparato: com sua
própria vida. Perguntaram-me onde estava a minha diversidade e onde estava a
filosofia da cultura sertaneja enraizada dentro de mim e eis que respondo: a
diversidade está espalhada em todos os cantos, seja na música, na pintura ou na
novela, mas cada um sabe interpretar e aceitar a sua diversidade da forma que
bem entender. Aqui não utilizo a ferramenta da diversidade, mas sim a
pluralidade diversificada que todos nós carregamos quando depreciamos algo. O
multiculturalismo existente em todos os povos se faz presente quando possamos
demonstrar algo diferente da nossa cultura popular e, neste sentido, Cristiano
Araújo pôde mostrar perfeitamente sua música regional de forma sensata,
original e atemporal para o Brasil inteiro, mesmo que às custas da mídia
regedora deste país. A diferença entre multiculturalismo, diversidade e
pluralidade diversificada é que a minha opinião se diz onipresente a opinião do
outro e que nem sempre somos obrigados a aceitar o que o outro diz, sabendo que
talvez esse outro tenha a mesma opinião formada que temos. Mais tomado pela
emoção da comoção sofrida pelo público presente entre notícia, velório,
sepultamento e o dia após a morte, escrevi um artigo brando na semana passada,
em que tentei comparar o distanciamento profissional entre Cristiano, Luan
Santanna, Gustavo Lima e, para ficar apenas no sertanejo universitário de hoje
em dia, não me atrevi a buscar nomes que lutaram verdadeiramente para que a
música sertaneja fosse, definitivamente, colocada em seu devido lugar. A
posição em que Cristiano Araújo estava ainda poderia ser a de melhor posição,
pois a mídia o renegava, mas o público lhe era fiel. Luan e Gustavo tinham a
mídia ao seu bel prazer e mesmo lançando discos com classificação baixa, lucram
e levam porcariada musical para dentro de nossos tímpanos. Nessa categoria,
Cristiano Araújo venceu a batalha: através do entrave entre divulgação de show
/ mídia global / casa lotada, o cantor vencia em todos os aspectos. A música
caipira, regional, sertaneja sempre foi reduto de anedotas e preconceito, mas
vale lembrar que todos os ritmos brasileiros, desde o samba de Clara Nunes,
Noel Rosa, Martinho da Vila, passando pelo pagode de Katinguêle, Exaltasamba,
Pixote e até a música romântica produzida por Fábio Junior, Mauricio Mattar e
outros são alvos de piadas, mas os sertanejos ficam mais ofensivos quando os
atacam. Por que? Porque o psicológico do sertanejo é mais lento. Explico: todos
os sertanejos dizem que nasceram na roça, de uma origem familiar rude e pobre,
mas que conseguem o estrelato através da música, que acaba sendo mais que a fé
em Deus que todos eles têm. Atribuem o sucesso ao pai, que lutou tanto para que
o filho (ou os filhos) chegassem à roda da fortuna musical, se orgulham de não
terem entrado para a faculdade e se orgulham de elevar o nome de sua terra
natal aos jornais. O primeiro ato de preconceito parte diretamente deles, dos
sertanejos e quando acontece alguma fatalidade como a que vitimou Cristiano
Araújo e muitos tentam explicar os motivos pela sua morte repentina, eles, os
sertanejos, se veem atirados num lamaçal de esgoto. Esse ato pejorativo de
preconceito se chama pluralidade cultural e parte não da mídia escolarizada,
mas sim de um grupo que já nasceu dentro do seio sertanista. A diversidade está
dentro de cada um de nós, enraizada em cada pessoa que cultiva a sua própria
cultura. Mas o que se viu nesta semana foi uma festa: nunca a morte de um
cantor meramente desconhecido do grande público se fez presente nas redes
sociais, no mundo da fofoca, do showbiz, da música. Cristiano Araújo levou para
seu enterro uma bagatela de gente anônima, choradeiras de parto prematuro, que
somados chegou a quase 61 mil estridentes. Suas músicas se tornaram hinos (e
isso está acontecendo ainda mais agora que ele está há sete palmos de terra!).
Mulheres em sua maioria se agarrando à outras desconhecidas pela mesma causa:
pela carnavalização da morte de um cantor desconhecido do Brasil. Há de nascer
vários cristianos agora, não no mundo da música, mas em forma de homenagem.
Assim como já mataram verbalmente o jogador português Cristiano Ronaldo (para
demonstrar que realmente o cantor era um mero desconhecido), tive que dar muita
risada quando foi comparada a morte do sertanejo universitário ao dos Mamonas
Assassinas: irrisório, hilário e, para não dizer canhestro. Mamonas Assassinas
já tinham fama e um certo prestígio quando morreram naquele desastre aéreo, mas
dizer que Cristiano Araújo tem o mesmo patamar de morte por levar multidões ao choro desengonçado, é dizer que somos
analfabetos natos. O que me faz falta é a cultura que vem de dentro de casa,
dos pais, dos avós, do irmão mais velho para demonstrar que mesmo havendo uma
música descartável, temos também a música que nos faz pensar, que temos Chico
Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal
Costa, Elis Regina, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Chitãozinho e Xororó, Pena Branca
e Xavantinho, Elomar (este sim, um verdadeiro regional brasileiro) e tantos
outros artistas verdadeiramente capacitados para nos mostrar que a música é a arte
maior de pensamento único. A carnavalização na qual fomos obrigados a degustar,
digerir e participar dos ensaios foi tão grotesca, tão irracional, tão
desumana, que chegou ao ponto de todos os meios de comunicação ficarem maciçamente
abordando o assunto, fazendo deste cerimonial um ato de bravura, de
enriquecimento humano, de emoção sentimental para com quem nem chegamos a nos
familiarizar. O que se viu foi uma
aberração completa, um sepultamento musical privilegiado para muitos que mesmo
não querendo ver, estavam curiosos para ver o apito final e dizer acabou! Não
me interpretem mal, pois o que estou falando é a mais pura verdade: Cristiano
Araújo levou mais gente para o seu enterro que para seu próprio show. Fomos obrigados
a participar desta coletividade fazendo parte das estatísticas de que o cantor
realmente atraía multidões. Muitos que lá estavam no dia final não se
conheciam, óbvio, assim como muitos que acompanhavam o sepultamento estavam ali
mais pela curiosidade que pela emoção. Afinal: mesmo Cristiano Araújo lotando
casas noturnas como fazia, seu público não era tão gigantesco assim, ou seja,
faltava muito para realmente ser um Cristiano Araújo de verdade. Precisou o
cantor morrer para provar que tinha mais público fora que dentro das casas
noturnas.
Cristiano
Araújo e a carnavalização de sua morte
Marcelo
Teixeira
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