Furacão de emoção |
Por
inúmeras* vezes foi difícil acreditar que naquela manhã de janeiro de 1982 o
Brasil tenha amanhecido sem a sua maior interprete, estrela de uma luz
incessante e de uma quase unanimidade, no auge de uma carreira batalhada com
unhas e dentes; Elis Regina, além de ser a maior cantora que o Brasil já havia
produzido, era também uma guerrilheira
de si mesma. Uma doce guerrilheira.
Com a extinção de um programa de grande sucesso em 1967, Elis deu asas à sua
carreira. Apresentou-se na América Latina e na Europa, lapidou ainda mais (se é
que isso era possível) a sua forma de cantar e interpretar. Ganhou em
suavidade, não perdeu a força e ainda presenteou gente como Chico Buarque de
Holanda, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Ivan Lins (que sonhava com algumas de
suas criações já com a voz da Estrela), Belchior, João Bosco, entre outros.
Através de suas interpretações que eternizou cada obra e alçou de vez no
cenário nacional, cada um dos citados compositores – por sua vez, todos se
encontravam no auge da criatividade. Mais madura Elis viajou o Brasil e o mundo
cantando e encantando. Da imponência à simplicidade, traçava-se um só caminho,
uma linha uníssona entre a genialidade e a mulher forte, apelidada pela
imprensa e amigos de Furacão e Pimentinha, Elis Regina começava a escrever
perpetuamente, seu nome na história da música mundial.
A grande voz do Brasil
trazia uma bagagem de influências de outras grandes cantoras, também
brasileiras, mas construiu um legado único e incomparável, sagrado e intransponível.
Espetáculos fantásticos como Falso Brilhante e O
Trem Azul, ficaram gravados na memória de quem os viveu e os assistiu.
Seu namoro e quase casamento com o Clube da Esquina foi um
marco histórico na música brasileira. Milton Nascimento, que foi um dos maiores
amigos e admiradores da cantora, a conheceu no Rio, no Beco das Garrafas. Neste
festival, Milton eternizaria os seus primeiros passos da sua Travessia pelo universo da Mãe Música até se transformar no word
music man da atualidade. Elis, ao gravar Canção
do Sal de Milton e Ronaldo Bastos com sucesso incontestável, abriu espaço
para uma parceria que durou uma década esplendida, num grande ápice de uma
explosão criativa jamais visto na MPB.
Conviveu com as gravações do
Clube da Esquina, de Milton e Lô Borges (guri prodigioso de 18 anos, na época).
Elis dividiu o palco com Milton em várias capitais e em várias oportunidades,
deixou-nos de presente a sua voz, numa de suas maiores interpretações, ao lado
do próprio Bituca. Cantou como se fosse pela última vez O que foi feito de Vera do álbum Clube da Esquina n°2,
fazendo tremer as estruturas dos estúdios da EMI. Na primeira apresentação no
festival de Montreux na Suíça, onde há até hoje uma noite só para artistas
brasileiros (atualmente, com o pior que se produz aqui), fez da introdução de
seu show uma sequência maravilhosa com Ponta
de Areia, Fé cega, faca amolada e Maria
Maria, que na voz da baixinha,
deslumbrou o Brasil.
Gravou Beto Guedes, Lô
Borges, Nelson Ângelo, Luiz Guedes e Thomas Roth e lançou para o Brasil a
célebre frase: Se Deus quisesse nos falar, nos falaria pela voz de Milton Nascimento.
Elis gravou o Clube da Esquina com carinho, amizade e admiração, marcando para
sempre a vida daqueles jovens mineiros de talento e criatividade fenomenais.
Elis fez o Brasil cantar por
quase vinte anos. Sua carreira esbarrou algumas vezes com o triste desfecho
político do país. Foi vigiada de perto pela Ditadura Militar e não raro, eram
vistos carros estranhos rondando as imediações de sua residência. Em
entrevistas, as quais ainda tenho reproduções de muitas bem guardadas,
declarava sua insatisfação com o sistema e dizia-se sem muita esperança no
futuro, tanto político, quanto cultural de nossa gente.
Elis Regina de Carvalho
Costa, nascida em 17 de março de 1945, reescreveu a história da música
brasileira e enalteceu a nossa cultura pelo planeta afora. Naquela triste manhã
chuvosa de 19 de janeiro de 1982, eu tinha menos de um ano e não sabia o que
acontecia. Elis morreu no seu apartamento em São Paulo, por intoxicação. Anos
depois, quando eu tinha meus 10 anos, quando ouvi O Bêbado e a Equilibrista pela primeira vez e um arrepio me invadiu
o corpo, pois nunca tinha ouvido uma voz tão espetacular e sensacional. Minha
mãe me olhou com olhos grandes quando a indaguei quem cantava aquela
maravilhosa música. Eis que ela me responde Elis Regina e meu amor por ela
começava ali.
Antes que os mais
conservadores venham gritar pelos motivos da morte de Elis, me ponho à frente,
alegando que o sistema sempre destruiu os seus ídolos prematuramente, talvez
sem esperar que ídolos mortos prematuramente, costumam ser elevados ao máximo
de seu status e cultivados com devoção. Janis, Hendrix, Morrinson, todos
destruídos pela Máquina do Estado, mas todos estão eternizados.
Como dizia, o Brasil
continua órfão de uma cultura popular mais sólida, mais abrangente e mais
BRASILEIRA por excelência, deixando o biscoito fino para grupos alternativos e,
às vezes, nem isso. Elis Regina é exemplo de que, levar a cultura e a motivação
para viver a vários pólos de nossa sociedade, não é uma tarefa tão complicada e
assim, como ela mesma dizia: Precisávamos
aqui no Brasil de um pouco mais de boa vontade. Elis era magistral. A
grande cantora, a quem os fãs não se esquecem e carpem até hoje sua perda,
disse em seu disco derradeiro: AGORA EU SOU UMA ESTRELA!
Alguém duvida?
A
imortal Elis
Marcelo
Teixeira
*artigo escrito em homenagem
ao meu grande amigo carioca Jaime Santana, fã número 1 de Elis Regina.
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