Homenagem à Guerreira |
Homenagear Clara Nunes não é uma das
tarefas mais fáceis para uma cantora que é pouco conhecida no cenário musical,
ainda mais para a cantora guerreira
Mariene de Castro. Considerada por muitos como a nova Clara (título que já foi
utilizado por Vanessa da Mata em início de carreira), Mariene segue com total
maestria no lançamento de seu DVD em homenagem à grande guerreira maior, a
cantora que deu voz e vida ao samba e que abriu caminhos para Alcione, Dona
Ivone Lara e Leci Brandão brilharem. Cantar foi uma das maneiras que Clara
conseguiu mostras as pessoas toda a sua qualidade e profissionalismo e, de
quebra, conseguiu angariar uma legião de fãs espalhados pelos quatro cantos do
Brasil, transformando-se num ser de luz, com uma radiação pura e profunda, que
talvez nenhuma outra cantora tenha. Sendo uma sabiá (apelido dado com carinho
por Vinicius de Moraes), Clara foi uma das maiores cantoras do país e aqui no Mais
Cultura, ela alcançou o segundo lugar na seleta lista das trinta maiores
cantoras do Brasil.
A
consternação vem do subversão entre a vontade e as dificuldades de vida e Clara
teve algumas dificuldades na vida. A missão de Clara talvez tenha sido cumprida
e ouvir Minha missão, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, trata de uma
criação e resignificação da vida pela canção, pelo canto, no cantar. O sujeito
canta a própria dor que carrega o mundo e há falta de felicidade: Quando eu canto / É para aliviar meu pranto
/ E o pranto de quem já / Tanto sofreu, sibila Mariene de Castro (Ser de luz - uma homenagem a Clara Nunes,
2013). O cantar é oferecido, então, como uma garrafada de ervas consumidas
– pois cantar cura.
Canto para anunciar o dia /
Canto para amenizar a noite / Canto pra denunciar o açoite / Canto também
contra a tirania / Canto porque numa melodia / Acendo no coração do povo / A
esperança de um mundo novo / E a luta para se viver em paz, canta Mariene de Castro com a
deprimida vitalidade de quem vivencia as ansiedades do súdito da canção. Dor
que rima com entrega lúcida à vida. Dor consciente dos prazeres e dos
infortúnios de viver. Tudo isso gira na voz quente e épica de Mariene de
Castro.
Determinações,
nada deterministas, ao contrário, tomadas mesmo como signos do viver, engendram
o fazer cancional, por movimentar, organizar e reapresentar sabedorias
coletivas e comuns inerentes ao humano. Quando
eu canto, a morte me percorre / E eu solto um canto da garganta / Que a cigarra
quando canta morre / E a madeira quando morre, canta, diz Clara Nunes.
Cantar é, portanto, interferir da dicotomia vida e morte.
Penso
que acreditar que apenas a tradição, como se esta não dependesse da traição a
si mesma – da inovação – para se reinventar e permanecer como tal (tradição),
contém o núcleo luminoso da identidade nacional, é deixar de entender para que
se canta: para anunciar o dia / para
amenizar a noite / pra denunciar o açoite / também contra a tirania. E as
mídias de reprodução têm servido de aliadas da preservação e da afirmação de
identidades e culturas, ao revelar e disseminar continuamente o tupi e o
alaúde, mitos e essências de brasilidades. Quando
eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de
Deus, canta Mariene.
O
cancionista – a neo-sereia, porque midiatizada – é o médium, a mediação
orgânica, das sereias, musas, dos santos, orixás, mitos em complexo signo de
rotação, no Brasil. Mariene de Castro apresenta uma voz de timbração forte, de
mulher guerreira, sensual e nossa, brasileira, entre a sala e o terreiro,
quente. A dicção está cheia de vigor e na própria entoação verificamos uma
afirmativa certeza da beleza repleta de fulgor e encanto. A vida pulsa aqui, na
voz de quem sabe para que canta: para remelexer a estrutura do nosso instinto
caraíba.
Clara
Nunes nos deixou em pessoa física. Mariene de Castro a interpretou, apenas. A
semelhança entre as duas é existente e cabível de comparações verdadeiras e
similares. A luz ainda não se encerrou no fim do túnel e nem a presença de
Clara se escondeu no mais profundo breu. Mariene veio para comprovar que ainda
temos muito o que saldar a nossa guerreira filha de Ogum com Yansã.
Um Ser de Luz (Homenagem a
Clara Nunes) / Mariene de Castro
Nota 10
Marcelo Teixeira
Nenhum comentário:
Postar um comentário