Autorretrato do artista |
Com a
abertura política do regime militar, deflagrada gradualmente a partir de 1978,
Chico Buarque deixou de ser o autor proibido pelo regime, o compositor
perseguido e de obra amputada pela censura. A obra discográfica, a teatral e a
feita para o cinema, passaram a ter maior liberdade de expressão, deixando as
metáforas implícitas, para a poesia da palavra mais visceral. Após a abertura, Calabar,
peça proibida na primeira metade da década de 1970, foi liberada e encenada, em
1980. No contexto da amenização da censura, A Ópera do Malandro
chegou aos palcos e aos discos na íntegra, sem pressões ou cortes. Chico
Buarque vivia no fim daquela década, uma fase criativa inspirada por
personagens retratadas nos palcos e nas telas de cinema. Criou trilhas sonoras
inesquecíveis e definitivas, percorrendo através da poesia e da melodia, o
universo feminino, existencialista e sexual, atingido a alma humana como poucos
autores de MPB conseguiram.
Vida,
álbum de 1980, traz as personagens de Chico Buarque direto dos palcos de
teatro, das telas de cinema, para o universo da Música Popular Brasileira. A
proposta iniciada com o disco Meus Caros Amigos, em 1976, adquire
maior teor existencialista neste álbum, onde a imagem e a melodia travam uma
instigante cumplicidade, revelando a maturidade de um compositor em busca da
sua perfeição interior e do perfeccionismo estético. Cada faixa descortina um
mundo contemporâneo, em que a tragédia das crônicas jornalísticas e o delírio
do amor vivido ao extremo da paixão, caminham paralelamente em Mar e Lua e Eu Te Amo; a paisagem pitoresca de uma Angola incipiente e de um
Brasil desnudado muito além dos centros urbanos, alinhavam uma estética poética
humana em Morena de Angola e Bye Bye Brasil.
Personagens humanas,
dramáticas, femininas e masculinas, intimistas e de extremos, são diluídas em
melodias perfeitas e canções definitivas, que faz de Vida um dos álbuns mais
belos e existencialistas de Chico Buarque. Com ele era enterrada para sempre a
fase do autor proibido e censurado, agora livre para exalar as emoções
poéticas, em uma nova forma de protesto, o do eu e do existir.
Produzido por Sérgio de
Carvalho, Vida foi lançado no fim de 1980. O disco revela um momento de
transição entre a abertura política e o fim gradual da censura política e
moral. Como se ainda tateasse nos novos tempos, a mensagem das canções faz a
ruptura com as limitações moralistas, passando levemente pelo protesto
político, expondo o íntimo dos sentimentos, levados à exaustão das paixões, das
incertezas dos atos de amor. A capa branca, trazia no centro o retrato de Chico
Buarque, desenhado por Elifas Andreato, dando-lhe um ar penetrante, quase a
saltar. Feito nos moldes do vinil, trazia doze faixas distribuídas em dois
lados. Trazia arranjos luxuosos de Francis Hime em dez faixas; de Tom Jobim e
Roberto Menescal em duas faixas.
Vida
(Chico Buarque), canção que dava título ao álbum, abre o repertório. A música Geni e o Zepelim, tema do travesti
Genivaldo, de A Ópera do Malandro,
inesperadamente tornou-se um grande sucesso nas rádios da época, gerando
polêmicas e a certeza de que a censura moralista havia chegado ao fim. A canção
acabou por inspirar o espetáculo Geni, em 1980, de Marilena Ansaldi e
José Possi Neto. Vida foi feita para
a peça, como se fosse a apoteose final de Geni
e o Zepelim. É o encontro do homem com o epílogo da sua consciência, uma
retrospectiva instigante, profunda, sofrida, ao âmago da existência e das
escolhas de uma vida, que, quando parece asfixiar, retorna de forma positiva. O
encontro entre o limiar dos palcos da vida e o além das cortinas do
desconhecido. O questionamento de todos ante os limites da alma e da sua
essência. A canção começa com a voz intimista de Chico Buarque, explodindo em
um final veloz, quase que de apoteose. Vida
foi gravada por diversos intérpretes da MPB, como Simone e Maria Bethânia, mas
a interpretação de Chico Buarque continua a ser a mais contundente, verdadeira
e definitiva.
Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz
Trecho
de Vida, de Chico Buarque
A segunda faixa, Mar e Lua (Chico Buarque), também veio
dos palcos, do espetáculo Geni. Inspirada numa crônica de
jornal, que contava o suicídio de duas mulheres que se amavam e, discriminadas
pela moral do lugar onde viviam, atiraram-se às águas de um rio. De uma forma
poética, quase doce, Chico Buarque descreve o momento final desse amor clandestino,
amenizando a morte com metáforas. É o amor que dilata a moral, perdendo-se no
desespero das barreiras. A sexualidade é acentuada entre desejos impulsionados
pela paixão proibida, pela sensação da natureza, sob o deslumbramento da luz da
lua e a imensidão do mar dos preconceitos. A canção tornou-se um hino do amor
lésbico, sendo gravada por vários intérpretes.
O samba modesto de Chico
Buarque alegra o disco com a faixa Deixe a Menina (Chico Buarque). Os
jogos de sedução e ciúme das rodas de samba; a beleza da morena e a ginga do
seu samba a ofuscar o ciúme do marido, amuado pelos cantos, enquanto ela
deslumbra os sambistas e os seus desejos. Irônico, divertido, o autor lembra
que por trás de um homem triste há sempre
uma mulher feliz, máxima que serve para todos aqueles que arriscam o amor
de uma mulher deslumbrante.
E se o amor quando perde o
esplendor dói, a sua perda corrói o sorriso, a superação do seu fim é o próprio
renascimento dos sentimentos. Já Passou
(Chico Buarque), descreve esse momento de alívio, em que a dor é substituída
por uma alegria com cicatrizes, que nos faz respirar e ter a certeza de que
sobrevivemos ao fim de uma paixão. Intimista, mas de palavras fortes, a canção
é o universo de Chico Buarque na sua mais pura essência.
Bastidores
(Chico Buarque), é quase um hino ao desespero diante do amor perdido. A canção
foi feita para Cristina Buarque, irmã do autor, sendo também gravada por Cauby
Peixoto. Foi na voz de um passional e eloquente Cauby que a música alcançou a
sua verdadeira face, sendo um sucesso que se colou à pele do cantor. A
interpretação de Chico Buarque é intimista, mas de um brilho ímpar, que só o
seu autor pode dar. É um universo feminino, que se adapta ao universo dos
amores conturbados das paixões entre iguais. A estrela, imponente no palco,
desejada por todos, não passa de um eco do seu canto nos bastidores, com os
sentimentos em carne viva, sofrendo pelo abandono. É no palco que ela dilui a
dor da perda, encantando e seduzindo a plateia. É no seu desespero pulsante que
a arte encontra a veia do carisma, a luz do canto e do palco.
Qualquer
Canção de Amor (Chico Buarque), é uma daquelas canções
menores dentro de um disco de grande esplendor. Intimista, é um jogo de versos
e palavras que, sutilmente selam o valor da paixão dentro das melodias, os
sentimentos cantados, jamais calados, não importando o autor, mas a mensagem.
E para amenizar todas as
questões existencialistas levantadas nas faixas anteriores, Fantasia (Chico Buarque), chega como um
carrossel que nos conduz a cantar pelo céu da poesia do autor. Palavras antes
proibidas pela censura, como gozo no sentido de orgasmo, já não sofriam
represálias. Um convite à distração da dor que nos aflige através do ato de
cantar, de ouvir a melodia e percorrer sem medo a fantasia proposta, abraçar
sem restrições, um álbum de rara beleza.
A música mais complexa do
álbum é Eu Te Amo (Chico Buarque – Tom Jobim). Sob a regência e o piano de Tom
Jobim, Chico Buarque fazia um dueto com Telma Costa. A canção foi feita para o
filme homônimo de Arnaldo Jabor, protagonizado por Sonia Braga. Mais uma vez a
paixão é mesclada por uma estética sonora e visual, evidenciada por um erotismo
latente em cada verso, cada gesto que se pode visualizar e quase que sentir o
odor dos corpos. Dentro de um quarto, os amantes perdem a individualidade,
dilacerando os caminhos nos desenhos dos corpos, rompendo as saídas nas malhas
da paixão. Se o amor é vivido de forma tensa, o fantasma da perda dispara suas
garras diante do medo da separação dos corpos, da vida além do leito. É a
paixão sem saída, vivida na plenitude do seu erotismo, no encaixe da
sensualidade, na linguagem dos corpos e das metáforas, envoltas pelos objetos;
sapatos, vestidos, paletós, revelam a paisagem dos amantes. Eu Te Amo é uma das mais belas canções
do amor erótico feitas na MPB.
De
Todas as Maneiras (Chico Buarque) é o retrato cruel do
desgaste da paixão, do vazio dos sentimentos, vividos em uma intensidade que
gerou a sua ruptura. No avesso dos sentimentos, palavras e agressões servem
para o afago do que se rompeu, do momento de paz em que o amor é uma guerra.
Gravada por Maria Bethânia, em 1978, no álbum Álibi, a canção não
encontra a dramaticidade cênica da cantora baiana, mas não perde a intensidade
diante do intimismo de Chico Buarque. Consegue um dos melhores momentos do
disco, quase que inesperadamente.
Morena
de Angola (Chico Buarque), gravada quase que em simultâneo com
Clara Nunes, alcançou grande sucesso na voz da cantora. Era o primeiro contato
cultural registrado em música entre Brasil e Angola, países de língua
portuguesa, colonizados por Portugal. Recém independente, Angola era uma jovem
nação que seria devastada pela guerra civil. Com um som a lembrar os ecos
africanos, a canção trazia uma alegre paisagem da alma da mulher angolana. A
canção foi composta após uma viagem do autor e de vários cantores a Angola, em
1980. O último verso faz uma homenagem ao MPLA (Movimento Popular de Libertação
de Angola), considerado subversivo pelo regime militar, por ser de esquerda e
apoiado logisticamente por Cuba. Assim como Tanto
Mar, a canção é uma homenagem às nações irmãs.
Bye
Bye, Brasil (Chico Buarque – Roberto Menescal), foi
feita sob encomenda, para o filme homônimo de Carlos Diegues. Conta-se nos
bastidores, que Chico Buarque demorou a pôr letra na canção de Roberto
Menescal; só entregando a composição já quando se encontrava em estúdio, pronta
para ser gravada. Conta-se ainda, que trazia uma letra enorme, e que Carlos
Diegues cortou a metade. Bye Bye Brasil
mostra uma aquarela realista de um país plural. Através da visão de uma
personagem ao telefone, o Brasil interior ou litoral, é descrito em suas várias
faces. De beleza quase que épica dentro da MPB, traz uma melodia de diferenças
sutis, difícil de ser interpretada, pois não tem um final, a letra é um convite
à improvisação, quase que a terminar como começou, ou seja, com um belíssimo
meio, e um final sem ponto. É o momento em que a ideologia transita no disco,
com sutis referências a um Brasil poucas vezes retratado, ou mesmo cantado. Bye Bye, Brasil, já refletia como um
moinho, os ventos da abertura pela qual passava o país.
O álbum encerra com a
visceral Não Sonho Mais (Chico
Buarque). É a terceira música do disco com uma vertente de inspiração homossexual.
Feita para o filme A República dos Assassinos, em 1979, de Miguel Faria Jr, a
canção relata o sonho de um travesti, no cinema vivido pelo ator Anselmo
Vasconcelos, com o seu amado, um policial corrupto, pertencente ao esquadrão da
morte. Odiado por todos, o amante é perseguido no sonho do amado, num dos mais
violentos momentos da canção brasileira. Assim como em Geni e Zepelim, o autor utiliza metáforas escatológicas, muito em
moda na época. Apesar do ritmo alegre e frenético da canção, a ironia da letra
é servida crua, em carne viva, em uma violência explícita. No verso Comemos os ovo, propositalmente escrito
fugindo da combinação do plural, mostra a castração feita sem piedade, sendo os
testículos devorados, submetendo o amado a mais perversa das humilhações contra
a virilidade. No fim, há o momento de conciliação, em que após um sonho tão
cruel e libertador, o travesti volta à submissão do amado, e pede que não o
castigue, pois não terá outro sonho tão devastador. Não Sonho Mais foi sucesso na voz de Elba Ramalho. Encerra
convulsivamente o álbum Vida, sendo
chancelada pela abertura política, longe da censura de outrora.
Vida é o
álbum do existencialismo humano, das questões psicológicas que se nos
intercalam. Das consequências das escolhas, da liberdade da sexualidade de uma
geração que estava preste a sair de uma longa ditadura que duraria duas
décadas. Era a MPB a ser porta voz daqueles novos tempos, e Chico Buarque o
poeta maior do encontro sublime da palavra com a melodia.
Vida
/ Chico Buarque
Nota
10
Marcelo
Teixeira
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