Dia de festa ao povo negro |
A
cultura brasileira e, logicamente, a rica música que se faz e consome no país
estruturam-se a partir de duas básicas matrizes africanas, provenientes das
civilizações conguesa e iorubana. A primeira sustenta a espinha dorsal dessa
música, que tem no samba sua face mais exposta. A segunda molda,
principalmente, a música religiosa afro-brasileira e os estilos dela
decorrentes. Entretanto, embora de africanidade tão expressiva, a música
popular brasileira, hoje, ao contrário da afro-cubana, por exemplo, distancia-se
cada vez mais dessas matrizes. E caminha para uma globalização tristemente
enfraquecedora. A presença africana na música brasileira, pelo menos em
referências expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita. Aparece, via
Jamaica, no carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas-enredo das escolas
cariocas e paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades. Mas nada de
modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba e em outros países do
Caribe. Mesmo com a explosão comercial da chamada salsa, a partir de
Porto Rico e via Miami, na música afro-caribenha de hoje é raro um disco que
não contenha pelo menos uma cantiga inspirada em temas da religiosidade
africana e interpretada com fervor apaixonado. Tito Puente, Mongo Santamaría,
Célia Cruz, Rubén Bladez e muitos outros são exemplos fortes, o mesmo não
acontecendo no Brasil, pelo menos na música mais largamente consumida. No
Brasil, o pagode, a partir da década de 1990, apesar da voga inicial de grupos
cujos nomes, mas só os nomes, evocavam a ancestralidade africana (Raça Negra,
Negritude Júnior, Suingue da Cor, Os Morenos etc.), entendemos que foi se
transformando em um produto cada vez mais fútil e imediatista para se preocupar
com etnicidade. E isto talvez por conta do conjunto de estratégias de
desqualificação que ainda hoje sustentam as bases do racismo antinegro no
Brasil. É esse racismo que, no nosso entender, vai cada vez mais separando
coisas indissociáveis, como o samba e a macumba, a ginga e a mandinga, a música
religiosa e a música profana, desafricanizando, enfim, a música popular
brasileira. Ou africanizando-a só na aparência, ao sabor de modas globalizantes
made in Jamaica ou Bronx.
Clementina de Jesus, cantora nascida em Valença, RJ, em 1901, e falecida no Rio, onde
vivia desde menina, em 1987, foi uma grande presença de personalidade negra no
Brasil. Descoberta para a vida artística já sexagenária, afirmou-se como uma
espécie de elo perdido entre a ancestralidade musical africana e o samba
urbano. Seu trabalho de maior expressão fez-se através da interpretação de
jongos, lundus, sambas da tradição rural e cânticos rituais recriados, como o
já Benguelê, de Pixinguinha. Logo
depois do surgimento de Clementina, outra importante interseção entre a música
popular brasileira e a religiosidade africana ocorre com os afro-sambas (Canto de Ossanha, Ponto do Caboclo Pedra
Preta etc) lançados por Baden Powell e Vinícius de Moraes em 1966. E é o
mesmo Vinícius que, agora em parceria com Toquinho, veio a lançar um Canto de Oxum, em 1971, e um Canto de Oxalufã, em 1972. Daí em
diante, a vertente começa a se rarefazer, com raras incursões, como a do cantor
e compositor Martinho da Vila, que, em um de seus discos do final dos anos 70,
registrou uma seqüência de cantigas rituais da umbanda.
Clara Nunes nasceu em Minas Gerais no
ano de 1942 e morreu no Rio de Janeiro no ano de 1983 e foi uma das maiores
cantoras do Brasil, considerada uma das maiores influências do país na música
negra. Pesquisadora damúsica popular brasileira, de seus ritmos e de seu
folclore, Clara também viajou várias vezes para a África, representando o
Brasil. Conhecedora das danças e das tradições afro-brasileiras, ela se
converteu à umbanda. Também foi a primeira cantora brasileira a vender mais de
100 mil cópias, derrubando um tabu segundo o qual mulheres não vendiam discos.
Clara e Clementina gravaram juntas um partido alto reverenciando a música
negra, o lundu, os atabaques. E festejaram juntas este feito.
Desafricanização, como sabemos, é o processo por meio
do qual se tira ou procura tirar de um tema ou de um indivíduo os conteúdos que
o identificam como de origem africana. À época do escravismo, a principal
estratégia dos dominadores nas Américas era fazer com que os cativos
esquecessem o mais rapidamente sua condição de africanos e assumissem a de
negros, marca de subalternidade. Isto para prevenir o banzo e o desejo de
rebelião ou fuga, reações freqüentes, posto que antagônicas.O processo de
desafricanização começava ainda no continente de origem, com conversões forçadas
ao cristianismo, antes do embarque. Depois, vinha a adoção compulsória do nome
cristão, seguido do sobrenome do dono o que representava, para o africano,
verdadeira e trágica amputação. Então, vinham as distinções clássicas entre da
costa e crioulo, entre boçal e ladino. Acreditamos que a música popular
brasileira, de raízes tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo
de desafricanização ainda em curso. Senão, vejamos. Quando a bossa-nova
resolveu simplificar a complexa polirritmia do samba e restringir sua percussão
ao estritamente necessário, não estaria embutido nesse gesto, tido apenas como
estético, uma intenção desafricanizadora? E quando a indústria fonográfica
procura modernizar os ritmos afro-nordestinos (de maracatu para mangue-beat,
por exemplo), não estará querendo fazer deles menos boçais e mais ladinos, pela
absorção de conteúdos do pop internacional? Pois esse pop
milionário, sem pátria e sem identidade palpável (mesmo quando pretende ser
étnico), é exatamente aquela parte da música dos negros americanos que a
indústria do entretenimento desafricanizou. Por tudo isso e como sempre disse a
grande dama negra da música popular brasileira, Elza Soares, a música preta pede passagem, que o dia
da Consciência Negra é celebrado com maestria e com muita música por artistas
negros de ontem e de hoje em eventos espalhados por todo o Brasil. De Negra Li
a Elza Soares, passando por Jorge Ben e Fabiana Cozza, a música negra é rica em
elementos sofisticados diferenciados do pagode do início da década de 1990 e
menos conturbado, hoje, do que na época de início de carreira da dama Elza
Soares. Viva a música negra brasileira, viva o povo negro, viva o povo
brasileiro. Negro na sua maioria!
A
Música Negra Brasileira
Marcelo
Teixeira
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