Elza e o fim do mundo |
Não é fácil ser Elza Soares. Embora
sua imagem esteja inúmeras vezes associada a Garrincha, Elza Soares é muito
mais que a ex mulher de um dos maiores jogadores de futebol do Brasil.
Considerada a melhor e a maior voz de todos os tempos pela BBC de Londres, Elza
sofreu racismo, apanhou, gritou, cantou o amor, cantou a desilusão, vociferou
contra as mazelas e a favor de um povo oprimido e carente. A música em sua vida
sempre foi prioridade, assim como aquilo que canta, que mais soa como verdade e
transpassa a sua emoção que irradia de sua pele para a pele seguinte. Elza
pediu passagem, ganhou liberdade e continuou vociferando contra vozes ocultas
dentro de um segmento musical, racista, feminino e caricatural. Elza é Elza,
negra, mulher, cantora, a maior de todas. Caiu no ostracismo, Chico Buarque a
ajudou a dar a volta por cima, tombou, se machucou, ralou os braços, cortou as
mãos e Caetano Veloso fez das tripas coração para ver do cóccix até o pescoço
inteira, em pé, vibrante, rosto entonando para o alicerce de uma luz sem fim,
reinando poderosa e soberba sobre aquilo que já sofrera, já se arrependera e se
machucara. Elza sobreviveu! E sobrevivendo desses ostracismos e dessas guerras
mundiais e musicais, voltou triunfal em 2002 pelas mãos de dois gênios da
música popular brasileira e caindo nas graças, mais uma vez, do público e da
crítica especializada. Passados mais de dez anos desde o lançamento de
inéditas, Elza adentra com o pé direito e nos ensina o que é ter quase 80 anos
de idade e lançar um disco maravilhoso, saboroso e original como o que lançou
no ano passado! Eu me rendo, porque Elza não esmorece e sabe que seu lugar é o
de ponta na MPB: há requintes de sabedoria aqui, há música de verdade, há voz
de Elza sobre canções verdadeiras, ideológicas, caprichadas. Entre palavrões e
machadadas de pensamentos periféricos, A Mulher do Fim
do Mundo (2015 / Circus / Natura Discos / 29,99) é um belo retrato
entre a paisagem da favela e da menina que se transforma em mulher por entre
becos cheirando a drogas e calcinhas penduradas no varal. O reflexo entre o
submundo do circuito inteiro das mulheres que se transformam em escravas do lar
perante seus homens é um divisor de águas neste disco, sendo retratada de forma
explorada em praticamente todas as faixas do álbum: há tiros, pulverização de
terra batida, becos mal iluminados, ruas vazias sendo observadas por meninos
pretos que logo serão bandidos e donos do pedaço. Há a mulher prostituta, há o
lirismo sutil de Berenice, há a aclamada guerreira Maria da Vila Matilde. Há
belezas com a sofreguidão estampada no estampido do revólver do marginal, há o
cenário destruído e pobre de um fim do mundo que pode ser bem ali, na porta da
entrada da sua casa. Elza pediu passagem, ganhou a liberdade e conseguiu ser
ouvida pelo povo oprimido, pelos novos compositores, para chegar ao sopro de um
disco à altura de seu peso e acima de seu poder. Eis aqui o poder de Elza
Soares!
A Mulher do Fim do Mundo (2015) / Elza Soares
Nota 10
Marcelo Teixeira
Nenhum comentário:
Postar um comentário