quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Clarice Lispector por Simone Guimarães


Clarice: ótimo
Milton Nascimento a definiu como selvagem e é através desta selvageria que Simone Guimarães abraça seu último disco, intitulado Clarice, numa justa homenagem à escritora ucraniana naturalizada brasileira, trazendo para a fonografia brasileira um registro audacioso e grandioso. Clarice é um dos mais belos discos brasileiros produzidos nos últimos anos e toda essa beleza e dramaticidade pode ser conferida através do som de uma das mais espetaculares cantoras surgidas nos últimos tempos. Seu nome é Simone Guimarães, a qual o Mais Cultura! teve o prazer de entrevistar este ano. Sempre tive vontade de escrever sobre livros e música e o universo particular de Clarice Lispector (1920 / 1977) invade a alma da musicista e toca fundo no coração de quem ouve Clarice (2013 / Café & Pupunha / 24,99), um dos mais belos discos de Simone Guimarães e praticamente selecionado ao posto de melhor CD do ano. Invadir a alma literária de um escritor renomado e transformar sua melancolia, sua vivência, seu carisma, seu mau humor, sua discrepância, sua circuncisão, sua solitude e sua maestria em música é algo realmente dificil, transgressor e um pouco rebelde. A selvagem Simone Guimarães entra em conluio a obra intimista e solitária de Clarice Lispector e nos brinda com canções altamente sofisticadas, com um lirismo profundo e sentimental, com convidados luxuosos que nos faz crer que a música e a literatura ainda possam andar juntas, lado a lado, num enrolar de mãos. Simone traz todo o louvor de categoria refinada e lustrosa e coloca em xeque-mate todo o seu sentimento pela escritora, através de músicas sublinhadas pelo equatorial senso comum que seus livros representam. Ao ouvir canções como Clarice e Como a Vida, o ouvinte mais atento já estará familiarizado com todo o resto do disco. E para o leitor mais assíduo de Clarice, este encontrará diversas nuances na musicalidade de Simone para com o tratamento da obra da escritora.

Com convidados mais que especiais, Clarice conta com um ninho de poesias e pilhas de versos diversos cantarolados em um misto de carinho e sentimentos. Toda a melaconlia bucólica e sofrida por Clarice ao longo de sua vida estão espalhadas em músicas como Sem Mais Tristeza ou Como a Vida. A claridade com que as músicas são disparadas a ouvidos solenes fazem com que o ouvinte mais atento agarre o disco por completo, tamanha a sua identificação com a obra da escritora. Prevalece também os duetos, sensacionais, a qual Simone nos presenteia. Está aqui as irmãs de Chico Buarque, Miúcha, mãe de Bebel Gilberto e Ana de Hollanda, assim como os filhos de Dorival Caymmi, Danilo e Tom Jobim, Paulo.

 

Basta olhar nos teus olhos, Clarice

Olhar que ninguém vê

Como são claros, os teus olhos Clarice!

Claros de convencer

Tão evidentes, manifestos, inequívocos

Claros, Clarice... mas distinto o seu caminho!

Saudades de você

Só pra encontrar o seu mundo Clarice

Procurei escrever

(Trecho de Clarice, letra e música de Simone Guimarães)

 

Dando um show de interpretação à parte, a cantora Ilessi canta com a alma a canção Rastros no Asfalto, composição que, álias, é de seu pai, o compositor Gonzaga da Silva. A música é sublime e o dueto de Ilessi com Simone é de arrepiar. Uma mistura de evidência e saudade é transpirada em Estrela do Mar, com a capacidade vocal de Danilo sagrando-se sobre a voz de Simone, entrelaçando e destoando toda a emoção sentimental e floral aquecida e coloquial sobre Yemanjá, estrelas e caminhos desertos.

O otimismo e a afetuosidade foram os pontos fundamentais para a elaboração deste trabalho tão genial e primoroso a qual Simone Guimarães adentrou de cabeça para projetar o universo de uma das mulheres mais influentes do País. Mostrar seus sentimentos, seus medos, anseios, círculos de amizades e repulsa pelo novo através de uma folha em branco e repassar tudo isso para a música não é uma das tarefas mais fáceis. Mas Simone conseguiu fazer um trabalho vigoroso, digno de merecimento de aplausos efusivos e contagiantes. Muito criativa, Simone possui um charme especial para com a música que entra em seus poros e sua sinceridade permite que mesmo diante das mais difícieis situações, encontra um lado positivo e entusiasma a todos a sua volta.

Simone soube aproveitar cada música com requintes intelectuais para fazer um excelente trabalho. Clarice nos mostra interiormente, mesmo que em planos distantes, o quanto nossas vidas não nos pertence e essa dimensão é transportada em melodias ricas de detalhes e vozes em uníssono carregadas de emoção. O desejo íntimo da alma, como reaginos, pensamos e somos, nossas esperanças, nossos sonhos, nossos ideais, nossas motivações, nossas forças resgatadas. Por vezes, a voz de Miúcha nos remete a pensar que Clarice Lispector está presente, em nossa frente, em nossa visão rente e humana. E isso é válido, pleno e sereno, pois Clarice nos faz crer que a alma é pertencente a este mundo, ao mundo em que vivemos.

Músicos de altíssima categoria, como Novelli e Leonel Laterza fazem um diferencial e tanto para o disco, em canções carregadas no alto valor afetuoso. Em Janaina, Meu Canto de Guerra, temos a certeza de que o além existe e as vozes de Novelli e Simone tornam a se misturar, entregando-se aos prazeres do místico. André Mehamari é um dos músicos mais competentes da atualidade e faz uma justa participação com seu piano em faixas como Clarice e Vi. Tem também Guilherme Arantes (Muito Diferente) e Leandro Braga no arranjo e piano em Como a Vida, Passarinhada, Rastros no Asfalto e Beija-flor Colibri.

Com um ar de Clube da Esquina, Simone recria com classe a música Vera Cruz, de Milton Nascimento e Márcio Borges e as vozes secundárias fazem toda a diferença, dando a dimensão da voz da cantora: selvagem, distinta, intrépida.

A realidade de Clarice Lispector transpassa para Simone Guimarães na mais pura e inquieta transição. Talvez seja um recado da cantora para a posteridade ou, quem sabe, para a modernidade conhecer a obra dessa grande escritora. Mas precisamos ouvir Clarice para termos a plena certeza de que a música popular brasileira como um todo, está a salva de intrépidos cavaleiros urbanos contrariados com a própria imagem surrealista. Precisamos abraçar Clarice para que tenhamos a nítida certeza de que a música popular brasileira está capacitada de vozes como a de Simone Guimarães, que é uma cantora excepcional, assim como seu mais recente disco.

 

Clarice Lispector por Simone Guimarães

Nota 10

Marcelo Teixeira

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