Dalva, a Rainha da Voz |
Sua
vida poderia ser um desses folhetins baratos, daqueles que se folheiam e depois
são atirados na lata de lixo mais próxima. Qual o quê! É um romanceiro, piegas
às vezes, mas quase sempre denso, e nunca monótono. Nasceu Vicentina Paula de
Oliveira, nome banal para quem iria fazer o Brasil inteiro atirar-se a seus
pés, com sua voz filetada a ouro, estilhaçadora de cristais, predestinada a
cantar sob uma eterna luz de um abajur lilás. Sua vidinha de menina pobre
poderia se contada em vinte ou duzentas laudas, sem que ninguém confiasse numa
vírgula que fosse relatado. A receita que lhe foi dada pelo destino,
convenhamos, era amarga: foi ser faxineira, costureira - tudo bem, profissões
dignas. Mas uma quase cegueira? logo naqueles olhos verdes da mulata, tão cismadores
e fatais? Passagem por orfanato, infância com poucos brinquedos, mas,
felizmente, com muita música. A vida lhe reservaria algumas tragédias. Mas
podemos fotografá-la em muitos momentos: cantando, por exemplo, no alto de um
banquinho, acompanhada pelo pai, e depois sob a lona de circos, já adulta. Nada
fazia prever que aqueles olhos verdes iriam cegar multidões. Fez-se cantora por
vocação, e quase nunca feliz por desíginio. Juntou-se a dupla Preto e Branco,
para depois formar o célebre Trio de Ouro, logo sintonizado por Villa-Lobos
que, pelos quatro cantos, espalhava que ali estava a maior cantora do Brasil. O
branco da antiga dupla, é bom que se esclareça, era Herivelto Martins. Um dos
maiores compositores brasileiros de todo os tempos. Com que, aliás, se casou e
teve dois filhos, Pery e Ubiratan. Pery herdaria a voz e os olhos da mãe, e o
imenso talento do pai. É bom não esquecer que o negro da dupla era Nilo Chagas,
que, igual a Ismael Silva, era conhecido também como um negro de alma branca -
sem atinar para a carga pejorativa desse aparente elogio.
A ruptura do casamento de
Herivelto e Dalva foi manchete escandalosa de todos os jornais e provocou a mais polêmica das polêmicas musicais já
acontecidas no Brasil. Desfeito o Trio de Ouro em 1949, Dalva assume sua
carreira solo. Se Francisco Alves era o Rei da Voz, faltava uma rainha para o
trono. Dalva, claro. As prensas da Odeon eram insuficientes para atender aos
sucessos que jorravam de sua voz, de agudos fulminantes. Enquanto isso, Antônio
Carlos Brasileiro de Almeida Jobim escrevia alguns arranjos para ela. A partir
de 1951, praticamente não se ouvia outra voz nas paradas de sucesso - apesar
das estrelíssimas Linda e Dircinha Baptista, do surgimento de Emilinha Borba e
Marlene que, aliás, lhe entregaria o cetro e o trono de Rainha do Rádio, e que
seria um dia entregue a uma outra mulata, igual a Dalva, modesta, chamada
Ângela Maria.
Amores, desditas, tragédias,
quem não as teve? Dalva sabia como desatinar sua vida, arebanhar inquietações,
jogar seu barco na tempestade. A imprensa continuava monitorando sua vida e seu
copo, e um fato novo novamente a coloca nas manchetes dos jornais: um desastre
pavoroso em seu carro deixa, em agosto de 1965, um rastro de mortos no caminho,
e aquela mulher de baixa estatura, cabelos agora alourados, vê-se atirada,
agonizante, num hospital. Todo o país fica com a respiração suspensa, uma
pergunta sufocando as gargantas: voltaria a cantar? Escapou e, com seu novo e
jovem amor, voltou para seu Shangri-lá na rua Albano, que sofreria uma reforma
inacabável. Do acidente sobrou uma cicatriz, rasgando-lhe o rosto. os tempos
eram outros, uma nova geração surgia e sobrou pouco espaço para aquela voz
embargada de lágrimas e soluços, com o sentimento transbordando à flor dos ossos.
Poucas cantoras atingiram
uma escala de empatia com o público como Dalva. Com a bebida pontuando sua
vida, ela fez-se refletir no espelho das canções que, de alguma forma,
rasuravam suas desditas. Mas sempre reverenciando seu público, as mãos cruzadas
sobre o peito, num discurso sincero, cujo se tornou celebre: É como sempre digo, eu não tenho fãs, tenho
amigos. Obrigada. Rica às vezes, infeliz quase sempre, andando de ônibus no
final da vida - ela se autobiografa modestamente em seu folhetim, ocultando ter
sido quem realmente foi: não somente Rainha, mas Porta-Voz de todos aqueles que
ficaram à margem da vida.
Vida que ela a deixou às
17:15 horas de um 31 de agosto de 1972, espalhando um rastro de luz e um fio de
voz que, até hoje, se esparrama qual um prisma luminoso sobre todas as vozes
que, de alguma forma, foram embebedar-se em seu coração.
Chegando sorrateiramente ao
vigésimo segundo lugar na lista das 30 Maiores Cantoras de Todos os Tempos,
Dalva de Oliveira representou os amores e decepções e felicidades que toda a
mulher de seu tempo seria capaz de carregar dentro de um único corpo, fazendo
destas desgraças sua maior felicidade ao cantar a sua verdade. Sua verdadeira
verdade.
22ª
Lugar: Dalva de Oliveira
As
30 Maiores Cantoras de Todos os Tempos.
Marcelo
Teixeira
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