Elis 73: simples e luxo ao mesmo tempo |
Entre o grande sucesso de O Bem Amado, primeira novela à cores no
Brasil, escrita por Dias Gomes, o lançamento de três álbuns importantes dentro
da música popular brasileira acontecia à revelia de um grande espetáculo de
público e crítica: Nervos de Aço,
do sambista Paulinho da Viola, em que o cantor aparece chorando na capa e Secos & Molhados, cujos os
integrantes estão apenas com as cabeças em forma de guilhotina, com Ney
Matogrosso como líder maior do grupo. O Brasil estava sob a ditadura austera de
Médice e tudo o que era falado e/ou cantado passava por uma rigorosa tortura física
e mental. Por outro lado, a Jovem Guarda já não fazia sucesso e o estilo de
roupa e os cabelos tanto de homens quanto o de mulheres, faziam enorme sucesso
entre as classes sociais mais abrangentes e que recaía sobre o proletariado da
vez (os grandes consumidores de toda uma geração). A efervescência musical
vinha por conta de grandes acontecimentos no país e mesmo sob forte domínio
político, o mundo da música ganhava peso e força à medida em que os meses se
passavam. Raul Seixas, Tom Jobim e Milton Nascimento lançaram músicas (e não
discos) sensacionais e conseguiram ganhar a credibilidade de líderes do partido
e até mesmo de políticos que se renderam às suas músicas. Mas o grande
lançamento ficou por conta de uma cantora baixinha, ranzinza, cabelos
masculinizados para uma época em que a feminilidade tomava conta: Elis Regina e
seu verdadeiro disco de categoria. Elis 1973
(19,99 / Philips / 1973) vai do simples ao luxo com uma assombrosa
tempestade lírica de uma das maiores cantoras do país. Partindo de uma naturalidade
mórbida, Elis soube ousar em todas as faixas, recriando sua própria voz, se
redescobrindo a cada canção, não poupando mágicas em suas cordas vocais e se
superando em um país até então dominado por cantores. Simples ao seu jeito e
luxuoso por completo, Elis 1973 é um
dos melhores (senão o melhor!) disco de carreira da cantora. Com composições de
Gilberto Gil, João Bosco e Pedro Caetano, a cantora pôde interpretar com
maestria cada faixa, degustando o seu próprio domínio de estúdio e se mostrando
versátil para a música num todo, não escondendo a enorme satisfação em fazer
aquele trabalho. Elis não saberia naquele momento e talvez nunca soube em vida,
mas seu disco era totalmente diferente daquilo que vinha fazendo até então: sem
ter uma música sequer de Milton Nascimento, Tom Jobim, Chico Buarque ou Ivan Lins,
a cantora optou por reunir um seleto time de compositores para dar corpo e alma
ao seu disco daquele emblemático ano. Justamente os cantores e compositores que
a ditadura tanto odiava e que eram perseguidos. Resultado: Elis
1973 se tornou referência e Elis conseguiu sair da aba do impulso
musical que a dominava até então. Vale lembrar que um ano antes, 1972, Elis também
veio com um disco sensacional, mas dominado de clichês e falta de senso comum:
o disco, mesmo sendo bom, também conseguiu ganhar notoriedade por ser exemplar
e moderninho para a época. Mas é em 1973 que o grande ano de Elis acontecia:
sem ser demagoga, lançou um disco em que não era política nem assombrava as
pessoas (exceto pela música Agnus Sei (João Bosco / Aldir Blanc), em que criticava
a Igreja; pelo contrário, fazia com que o público se aproximasse dela com mais
simpatia e menos arrogância e talvez isso explique o enorme sucesso de seu
disco e show Falso Brilhante, em 1976,
com composição do também João Bosco. Além de ser um dos discos indispensáveis
em sua discografia (tanto para Elis quanto para o público), o disco trouxe
particularidades que fizeram com que o mundo da música em seus bastidores
entrasse em devaneio. A começar pela música Ladeira
da Preguiça, que Elis pedira a Gilberto Gil por telefone e, enquanto
conversavam, o compositor baiano escrevia a letra sem ser incomodado por uma
Elis estridente do outro lado da linha. Recentemente, em seu disco Gilbertos Sambas (2014), Gil disse que
era impossível não se lembrar de Elis e de sua história quando canta essa
música. Em segundo lugar, teve a pequena rusga entre Elis e Beth Carvalho: a
sambista recusou a música Folhas Secas,
de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, pois seu disco já estava completo
(fechado para ser reproduzido). Então, Nelson ligou para Elis e a cantou via
telefone e a cantora gaúcha se derreteu e aceitou gravá-la. O enorme sucesso da
canção fez com que Beth se sentisse traída, pois o grande trabalho de Elis 1973 seria É Com Esse que eu Vou, um samba-canção de Pedro Caetano, que ganhou
dimensão rapidamente. Alguns anos depois, Elis dissera em entrevistas sobre
esse episódio e Beth Carvalho (que tivera crises existenciais pelo sucesso de
Clara Nunes) praticamente não fala no assunto. Seja como for, Elis 1973 é um dos melhores discos de
Elis e não pode ficar de fora de qualquer lista que aborde os melhores discos
nacionais de todos os tempos. Elis se mostrou como uma das melhores cantoras
daquele ano (em 1974 veio com o excelente Tom & Elis,
referência até hoje) e sua música, sua voz, seu carisma e sua popularidade eram
gritantes mesmo em um período obscuro da nossa própria história.
Elis 1973 (1973) / Elis Regina
Nota 10
Marcelo Teixeira
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